O insólito proletário da bola


Henry Ford, no início do século XX, revolucionou a indústria ao implantar em sua fábrica de automóveis o Fordismo, sistema caracterizado pela produção em massa, onde os trabalhadores executavam uma única função dentro da fábrica, fazendo com que estes desconhecessem todo o processo de montagem. Este sistema, porém desperdiçava muitos recursos pois a demanda era sempre menor que a oferta. Nos anos 50 e 60, a Toyota desenvolveu um sistema que visava a evitar esse desperdício e maximizar a qualidade do produto. Uma das medidas adotadas pelos japoneses foi a flexibilização dos operários, que agora conheciam todo o processo de produção e podiam executar diversas tarefas dentro da fábrica.
Sistema de produção Fordista, detalhado e satirizado por Charles Chaplin no clássico Tempos Modernos, de 1936.


O meio-campo, no futebol, passa por um processo de transformação parecido. Nos centros mais taticamente evoluídos, cada vez mais são utilizados meios-campistas "Toyotistas", que tem qualidade o suficiente para exercer diversas funções dentro de campo e dominam todos os fundamentos técnicos e táticos do jogo (como Claudio Marchisio, Paul Pogba, N'Golo Kanté, Luka Modric, Ivan Rakitic e Arturo Vidal), em detrimento dos médios "fordistas" , que são especialistas apenas em uma função e são inábeis em quaisquer outras áreas do campo (como os volantes de contenção e os camisas 10 clássicos).

Aqui no Brasil, onde o futebol demora a se reciclar, sendo ainda grande adepto da pré-histórica divisão do meio campo em volantes de contenção e meias armadores, há muito pouco espaço para aparecer um Kanté, um Vidal ou um Marchisio, expoentes da polivalência e do jogo intenso. Mas durante esta atual temporada, considerada de renovação para boa parte dos fãs brasileiros de futebol com a chegada de Tite ao comando da seleção, apareceu um rapaz capaz de desafiar os velhos conceitos da velha guarda dos treinadores brasileiros. Seu nome? Danilo das Neves Pinheiro. Não conhece? Experimente então Tchê Tchê, apelido tão inusitado e único quanto seu estilo de jogo.

Tchê Tchê era uma das principais peças de Fernando Diniz no Audax, vice-campeão paulista. O estilo de jogo do treinador, batizado de tiki-taka à paulista pela imprensa, tinha como principal conceito algo que Tchê Tchê entende bem: a rotatividade de posições entre os jogadores de modo a valorizar a posse de bola. Dentro desse esquema, Tchê Tchê se destacou por sua imensa facilidade em se adaptar às novas posições com perfeição, chamando a atenção do técnico Cuca, que iniciava seu trabalho no Palmeiras sob contestação.
Tchê Tchê comemora gol que marcou contra o Corinthians, na semifinal do campeonato Paulista, atraindo para si atenção da mídia em todo o país.
Chegou ao alviverde em maio e rapidamente se firmou como titular absoluto do time. Sua capacidade de adaptação fez com que Cuca testasse sua polivalência constantemente, escalando-o nas duas laterais, como volante, meia e até mesmo como ponta-esquerda, atingindo seu auge de atuação quando revezava entre o meio e a lateral-direita com Jean, chegando a um ponto onde nem mesmo os comentaristas especializados sabiam definir sua posição no campo.

Se firmou como meia atuando ora como principal marcador, ora como volante de saída (quando atua ao lado de Thiago Santos ou Gabriel). Mas em qualquer um desses casos, Tchê Tchê tem como principal função ser o termômetro do time. É ele que inicia as jogadas de ataque do Palmeiras, recebendo a bola dos defensores e distribuindo-a com uma eficiência e simplicidade poucas vezes vista em terras tupiniquins (Tchê Tchê completou 1124 passes certos no brasileirão, com média de acertos de 85%, além de efetuar 1 key pass por jogo, média alta para um jogador que vem de trás). Tchê Tchê também é um mestre na arte de se movimentar e ocupar espaços, sendo sempre uma opção de passe para desafogar o jogo e começar tudo de novo, onde quer que a bola esteja. Além disso, como bom defensor, Tchê Tchê recompõe muito bem a linha de defesa, faz excelente cobertura às subidas de Jean e Egídio e é relativamente eficiente no mano a mano (se considerarmos que força física não é o forte dele) quando recupera em média 1.6 bolas por jogo, compensando as perdas de posse da bola que contabilizam 1.3 por partida. Toda essa versatilidade vem acompanhada de uma impressionante capacidade de leitura de jogo, um vigor físico inabalável e uma intimidade com a pelota que enche os olhos de quem o vê jogar de perto, onde Tchê Tchê mostra um lado seu que não conseguimos ver quando o assistimos pela televisão.
Mapa de calor de Tchê Tchê na vitória sobre o América-MG no primeiro turno: Por todos os cantos do campo.
O Palmeiras tem em Tchê Tchê seu jogador mais regular. Até mesmo os mais badalados atletas alviverdes passam ou passaram por momentos conturbados: Fernando Prass está lesionado e só volta ano que vem, Vitor Hugo, apesar de estar jogando bem, não é o mesmo zagueiro de 2015, Cleiton Xavier dá a entender que desaprendeu a jogar bola em sua estadia na Ucrânia, Dudu se tornou o capitão da equipe, mas ainda sofre com o estigma de ser instável emocionalmente e Gabriel Jesus aparentemente já está com a cabeça em Manchester. Tchê Tchê segue firme como um dos melhores (senão o melhor) jogadores do campeonato brasileiro, mesmo longe dos holofotes da imprensa, que vê poucos motivos para enaltecer tanto um jogador que não faz gols, não dá muitas assistências nem tem um estilo irreverente ou polêmico. A verdade, todavia, é que ele merece toda a atenção do mundo, por representar um tipo de jogador muito raro no Brasil, porém cada vez mais presente nos times taticamente mais evoluídos da Europa.

Este texto é um apelo: por mais jogadores como Tchê Tchê, sinônimo do "meia toyotista", da falência iminente do ultrapassado método de produção que utiliza volantes cães de guarda e camisas 10 estáticos, tão comum e exaltado no arcaico futebol brasileiro. Tchê Tchê, que no auge de seus 24 anos representa uma verdadeira revolução que, por mais tardia que seja, é extremamente necessária para a reafirmação da indústria do futebol canarinho no cenário mundial. Vamos torcer para que Tite, o novo dono da fábrica, saiba disso.
Após se firmar como um dos melhores jogadores do país em 2016, Tchê Tchê merece chance estre os convocados de Tite.
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