O andante e o errante - uma noite pra história

O andante desavisado que, no começo do ano, pegasse a tabela do Brasileirão de 2016 e mirasse a vigésima nona rodada, veria, perdido entre outros jogos mais atraentes, uma partida entre Internacional e Coritiba no estádio Beira-Rio, mais um jogo qualquer dentre os 380 que compõem as edições de pontos corridos de vinte clubes do campeonato nacional. O errante com olhar mais atento, porém, enxergaria nessa partida uma possibilidade de haver um capítulo emblemático na história do futebol, no alto do umbiguismo típico dos gaúchos. O futebol, como um ROMANCE DE FOLHETIM (literatura numa hora dessas?), sempre aceita um capítulo a mais e improvável em sua longa e, por que não, eterna linha do tempo.

O andante - que definitivamente não se aprofunda nas análises românticas do futebol - enxerga história como conquistas, taças e números frios na estatística. Ledo engano, pois desconsidera que para chegar ao 'finalmente', um clube precisa passar por um ou muitos moldes de caráter e CASCA, geralmente não muito amigáveis ou de doces lembranças. Para cada gol do Sóbis no Morumbi, um gol de Mahicon Librelato em Belém. O errante, que parece uma encarnação de Álvares de Azevedo de tão ultrarromântico, lembra com mais nitidez uma vitória sobre a Ponte Preta no Beira-Rio com gol de Ânderson Papoula que o gol de Adriano Gabiru em Yokohama. Nas horas de aperto, o sentimento fala mais alto - e é aí que os byronianos se destacam.

Antes da partida entre Internacional e Coritiba, duelo de foice no escuro na briga contra o fantasma iminente do descenso, o andante e o errante se encontraram na frente do estádio. Velhos amigos, como a morte e a vida, discutiram sobre a atual situação do Inter, as semelhanças e diferenças de outros momentos difíceis da história colorada e sobre as eleições municipais onde, logicamente, apoiaram candidatos antagônicos, um reflexo do antagonismo que os segrega, mas também os une. A única vez em que convergiram foi quando falaram que a hora era de superar as diferenças e apoiar o Inter acima de tudo. O andante, frio, antes de ir para sua cadeira numerada, disse que não via a hora de voltar ao Beira-Rio pra noites de fases avançadas de Libertadores da América. O errante, terminando de tomar seu latão, lamentava o preço do ingresso mais barato, lembrando com nostalgia do mísero um real cobrado em 1999 contra o Palmeiras, naquele que considera o jogo mais importante da história do Beira-Rio.
Alguns não sabiam que presenciavam um dos maiores jogos da história do Inter e de seu estádio.

O jogo, marcado por uma imensa displicência técnica e erros lamentáveis de ambos lados, foi mais uma significativa e explícita confirmação das diferenças entre os dois personagens dessa crônica (que me perdoem a quebra da quarta parede literária). De um lado, o andante bradava a cada erro de passe, lembrando grandes jogadores que passaram pela história do Inter. Mesmo os qualificados tecnicamente, como Luis Manuel Seijas, não eram poupados pelas vozes de quem vira há pouco tempo D'Alessandro desfilando seu futebol na relva do estádio colorado. O errante, por sua vez, a cada erro cometido, mantinha no seu imaginário uma lembrança clara de times horríveis da década de 90 do Inter, que formaram o seu caráter como torcedor. Ameaçava explodir com algum erro de passe de Willian, mas rapidamente retomava a consciência ao lembrar de Hidalgo e outras nabas que vestiram vermelho.

Após um segundo tempo insosso, um pênalti é marcado para o Coritiba, em um momento onde o Inter tinha mais volume, embora estabanado. O cenário de tragédia se desenhava, já que uma derrota ali representaria praticamente um carimbo para a disputa da segunda divisão em 2017. O andante, inconformado, bradava que Juan nunca erraria o pênalti porque bate bem na bola. O errante, em silêncio, sonhava com um escorregão na hora da cobrança. Danilo Fernandes contrariou os dois pensamentos e fez uma grande defesa, que reacendeu o espírito colorado (porque o futebol não se vê há mais de ano na beira do rio). No ímpeto e numa marcação duvidosa, pênalti pro Internacional. A antítese de um jogo despretensioso que se tornava histórico havia consagrado o perfil de torcedor do errante, propositadamente manipulado pelo autor desse texto para que haja maior aceitação do leitor. Vitinho chutava forte no canto direito de Wilson, herói há poucos dias de uma classificação nos pênaltis na Copa Sul-Americana.
O momento da sobrevida.

A partir dali, drama típico dos jogos mais importantes, apesar de não... espera um pouco, o complemento dessa frase não é verdadeiro. Era, sim, um dos jogos mais importantes da história do Inter. A grandeza de um clube não se faz apenas de grandes títulos, de número de sócios ou de camisetas vendidas. O que faz a história do clube são noites como essa, onde o futebol mostra todo o seu ÂMAGO imprevisível e apaixonante, que transforma um jogo qualquer em uma verdadeira epopeia. O caráter de muito colorado arrogante da geração pós-2006, que em nada representa a história do clube do povo que prefere ser chamado de campeão de tudo, definitivamente recebeu uma marca importante no dia de ontem, como um GADO é marcado no campo.

A noite foi defintivamente emblemática - seja na ótica do andante ou na do errante. Se a epopeia vai servir para salvar o Inter do descenso, a história do futebol vai se encarregar de nos contar. Mas sem dúvidas, uma porção infinitesimal (matemática agora...) nos foi contada ontem, de maneira imprevisível. Tão imprevisível quanto elementos de literatura e matemática na crônica de um jogo qualquer - ou de um dos maiores jogos da história do inter.
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