Sonho com aviões caindo, decepção na Libertadores de 2008, vontade de lançar um livro, problemas psicológicos, amizade com Dario Conca, convivência com Ricardo Gomes, pancadaria dentro de um vestiário em Macaé, lesões sérias e uma carreira cheia de títulos importantes. Conheça a história de Ricardo Berna contada da forma mais detalhada possível pelo próprio goleiro em mais uma entrevista aqui no 4-3-3. Garantimos que será uma das coisas mais interessantes que lerá no dia de hoje.
Confira na íntegra:
1. Quando treinava na base do Corinthians você recebeu uma proposta do Japão onde ficaria três anos lá. Aceitou, porém, voltou ao futebol brasileiro para defender o Guarani um ano depois. Por que não cumpriu os três anos previstos? O que te levou a aceitar a proposta do Guarani?
Fui para o Japão e era tudo novidade para mim, fui muito feliz lá! Desenvolvi muito bem, aprendi a língua e fui alfabetizado. Como estava em fase de crescimento voltei com 12kg de pura massa magra, a alimentação de lá me ajudou muito. Fiquei um ano e voltei em Janeiro de 2006, de férias, já com a passagem comprada para voltar ao Japão. Mas quando senti a família perto, os amigos, o Guarani...
Acho que isso mexeu um pouco comigo, pois era muito novo, extrovertido, e voltei do Japão mais sério, introvertido, talvez pela cultura deles. Mas na verdade o que me fez decidir ficar foi ter tido por dois dias seguidos o mesmo sonho. Sonhei que o avião em que eu estava caía! Eu via tudo pela janela do avião, lembro até hoje desse sonho, da imagem, o avião perdendo altitude como se estivesse aterrissando, mas não tinha pista, era no meio de uma cidade, conseguia ver os arranha-céus pela janela, de repente vinha o impacto e eu acordava num pulo sentado na cama, encharcado de suor. No primeiro dia fiquei pensativo, ponderei bastante, mas estava triste por estar chegando o dia de partir. Mas no segundo dia levei a sério, era muito real, sei lá! Levantei e fui direto no quarto do meu pai, bati na porta dele e falei que não voltaria para o Japão, pedi para ele resolver. Acho que só queria um motivo para isso e o sonho foi um bom motivo.
2. Embora tenha assinado seu primeiro contrato profissional quando só tinha 17 anos, você só chega em um clube da elite quase dez anos depois, quando, vindo do América Mineiro, assina com o Fluminense. Acha que poderia ter estourado mais cedo? Sua lesão no púbis tem alguma parcela de culpa nisso?
Fui profissionalizado em 1997, no Guarani de Campinas-SP. Lembro que em 1998 saí na revista Placar (referência na época) como uma das grandes promessas do clube, mas acabei saindo de lá em 2000 sem ter feito um jogo oficial sequer como profissional. Tive problemas de relacionamento com dirigentes e como era eu mesmo quem resolvia minhas coisas isso pesou. Sempre fui pacato, mas era cabeça quente e me posicionava demais. Lembro que isso aconteceu quando o Ricardo Gomes era o treinador do Guarani e eu era a terceira opção na minha posição e os dirigentes não queriam me inscrever, no intuito de trazer um outro goleiro que era filho do vice-presidente geral do clube. O vice-de-futebol quis me afastar, mas como eu possuía um contrato consegui ficar integrado só treinando. Cheguei a compor coletivos como lateral esquerdo, atacante (fiz gol até!). E nesse período ganhei a confiança do Ricardo, eles estavam montando o elenco e chegaram a cogitar me escalar de zagueiro pois minha força, impulsão e tempo de bola chamavam a atenção, mas nem pensei nisso.
Tudo isso aconteceu em um período importante de transição no futebol, a vinda da Lei Pelé. Era início de 2000 e meu primeiro contrato como profissional terminava em Março onde eu ficaria livre pela nova lei. Antes precisaria que alguém me comprasse. Foi quando o Ricardo me chamou na sala dele e disse que ia mandar me inscrever no Campeonato Paulista, comprando briga com o vice-presidente de futebol. Eu fiquei envaidecido, tinha recebido uma proposta para sair rumo ao União São João de Araras um dia antes, onde disseram que comprariam meu passe por 30 mil sendo que na época eu ganhava 500 reais por mês. Pensa, era muito dinheiro para um goleiro que ainda estava começando e não tinha noção de nada! Contei isso para o Ricardo, ele chegou a citar o exemplo do Fabio Costa que tinha acabado de ser contratado pelo Santos-SP vindo do Vitória-BA e foi lançado por ele quando era quinto goleiro no time baiano. Mas decidi ir embora e ele até me ajudou nisso. Em dois dias eu já era jogador do União São João. Se teve um momento que penso onde tudo poderia ter sido diferente na minha carreira, foi esse.
Cheguei no Fluminense-RJ em 2005, ano em que fiz 25 anos, contratado do América-MG. Nesse meio tempo passei por muitas situações que ditaram minha trajetória, cheguei a passar por 17 clubes diferentes. Em uma dessas situações, talvez a principal tenha sido no Primavera-SP onde tive a lesão no púbis. Na época esse tipo de lesão era um monstro obscuro e tive que aprender mais sobre meu corpo, meu trabalho e pude entender como o conhecimento favorece para que possamos buscar um melhor desempenho. Quando cheguei no Fluminense era um pouco mais maduro, estava decidido que quando pisasse em um clube grande só sairia para clube da Europa. Olha, se analisarmos pela qualidade como atleta, empenho, resiliência, disciplina, cognitivo, enfim, tudo o que é necessário para um atleta de alto desempenho creio que sim, poderia ter estourado mais cedo. Porém, existe um fator preponderante que influencia diretamente em tudo que um atleta pode trabalhar e no meu caso, influenciou diretamente na minha trajetória... a competência emocional. Eu só vim descobrir isso agora, em 2013/2014, depois que tive um impasse judicial com o Náutico e decidi parar de jogar para organizar outros pilares da minha vida. Passei por um processo intenso de coaching e só então pude enxergar com outros olhos, os da realidade, situações em que vivia. Hoje posso dizer que minha vida se resume a dois períodos, antes do coaching e depois do coaching, mesmo tendo construído minha carreira antes disso. Ah se eu conhecesse esse processo antes... certamente teria alcançado muitos objetivos profissionais que não consegui alcançar.
3. Pelo tricolor você se tornou um vencedor. Foram dois brasileiros e uma Copa do Brasil, além do estadual. Nesses anos de Fluminense, qual destes títulos representa mais para você?
2010 com certeza. Ser Campeão é muito bom. Ter contribuído em todos esses títulos me fez sentir mais valorizado. Mas em 2010 foi diferente, foi ali que as dúvidas foram embora de vez. Me sentia alegre, treinava com alegria, minha primeira filha iria nascer. Mas tinha um ponto de apreensão, meu contrato terminava em dezembro de 2010. O Conca e o Marquinhos eram meus amigos mais próximos e conheciam minha trajetória. Eram os que me davam mais força, o Conca me dizia que não importa como tinha começado, mas sim como terminaria. Eu acreditei nele e foi automático. Nunca tinha visto um treinador liderando um Brasileirão trocar o goleiro, foi o que o Muricy fez. Depois do título ele até me contou a história, que penso em publicar no meu livro um dia. Se soubesse antes talvez teria atrapalhado tudo, Deus sabe de verdade o que faz.
Berna viveu momentos de glória com o Fluminense. |
4. Infelizmente passou grande parte da sua estadia do Fluminense alternando entre banco de reserva e titularidade, sendo até terceiro reserva em algumas ocasiões, essa falta de sequência te incomodava?
Sim, muito. Não entendia ao certo o que acontecia e confesso que me condicionei a não querer entender. Isso teve um ponto que influenciou muito em 2007, quando tinha assumido a titularidade no campo ajudando o Fluminense a não ser rebaixado no Brasileiro de 2006, comecei como titular, o PC que me lançou. Depois de muito desgaste que já vinha do ano anterior ele se desligou do clube e veio outro treinador que me tirou do time sem justificativa de desempenho. Isso mexeu muito comigo e confesso que não aceitei. Busquei explicações e a justificativa que ouvi foi a pior possível. Daí foi um peso que acabei carregando e que refletiu muito nos meus altos e baixos em outras oportunidades. Mas hoje sei que se tivesse competência emocional teria lidado de maneira melhor com tudo e teria melhores resultados.
Não reclamo, pelo contrário. Sou muito grato a Deus por ter me proporcionado ficar tanto tempo no clube. Tive a oportunidade de viver a década das conquistas mais expressivas da história do clube e aprender com grandes jogadores que passaram lá nesse período.
5. A Libertadores de 2008 com certeza está entre as maiores decepções da história do clube carioca, depois de reverter um resultado difícil, perde nos pênaltis em casa. Para você que estava no elenco, qual era o clima dentro do vestiário após aquele vice-campeonato com gosto amargo? Como se sentiu ao ver o título mais importante da história do Fluminense escapar pelos dedos daquela forma?
Lembro que o Washington perdeu o pênalti e acabou. Eu fiquei muito triste, mas corri para amparar ele. Senti por ele! Era uma referência para mim no grupo. Lembro que, assim que ele perdeu o pênalti, a primeira coisa que pensei foi na sequência. Tínhamos que continuar, ele estava em choque ainda quando o abordei, falei que não era um pênalti que iria mudar a carreira vitoriosa dele na vida. Quando desci para o vestiário foi que começou a cair a ficha, perdemos! Passou um filme na cabeça de toda a trajetória até aquele momento, lembro de entrar no vestiário e ver o Luiz Alberto sentado no chão chorando, não aguentei, desabei também. A dor foi a mesma de perder um ente querido, não gosto de lembrar muito isso, mas de certa forma me edificou aquela situação, pois aprendi que a vida tem seus tropeços e que cada resultado ruim, por mais expressivo que seja, é uma oportunidade de aprender a fazer diferente, melhor. Temos de continuar, Deus se alegra de quem segue adiante. Depois tivemos dificuldades no Brasileiro, pois não estávamos preparados para perder a Libertadores. Mas no final escapamos do rebaixamento por um ponto, foi um sufoco.
6. Após o segundo lugar, se criou uma aura estranha ao redor da equipe equatoriana da LDU quando se tratava de Fluminense, tanto que apenas um ano depois vocês voltaram a perder para eles na final da Sul Americana. Havia algo diferente ao enfrentar a equipe deles? O elenco sentiu a pressão da imprensa ao forçar o adversário com um “algoz”?
Classificamos para a Sul Americana ficando em 14º no Brasileiro onde o maior objetivo era não cair pelas circunstâncias que se formaram. E quis o destino que fossemos a outra final com o mesmo time, no Maracanã. Ali já estávamos calejados, tínhamos enfrentado muita dor. Mas eles experimentaram a glória e levaram vantagem de novo. Lembro que teve expulsão quando tínhamos chance de reverter e quando acabou ficamos bastante revoltados. Mas voltamos para receber a medalha de prata. Lembro que ali o Cebajos, goleiro que pegou três pênaltis na Libertadores 2008, estava no banco de reservas. Tive que pedir a camisa dele para não esquecer aquela lição. Levamos um peso desnecessário para campo em 2008 no primeiro jogo e perdemos a chance de decidir nos 180 minutos, pagamos o preço nos pênaltis. Mas em 2009 não, o grupo estava modificado, jogadores buscando afirmação no clube. A decisão do árbitro foi o que definiu, não estou dizendo se errou ou acertou. Mas tínhamos uma chance, só que deu eles de novo, enfim.
Uma imagem que ficou marcada na memória de qualquer tricolor. |
7. Em 2015 quando atuava pelo Macaé, aconteceu um episódio muito polêmico. Em um jogo contra o Flamengo pelo carioca alguns torcedores rubro negros invadiram o vestiário e te agrediram antes do jogo, gerando uma denúncia ao GEPE e manifestação da FERJ. O que exatamente aconteceu neste dia? Algum agressor foi identificado e punido?
Foi loucura, estávamos na área de aquecimento dos vestiários durante a palestra pré-jogo quando torcedores entraram gritando invadindo o vestiário. Lembro que alguém disse para não sair de onde estávamos, mas lembrei que mulheres e crianças estavam no acesso ao gramado para as crianças entrarem com o time. Falei que não podíamos ficar ali sem fazer nada e fui abrir a porta. Era muita gente dentro do vestiário, todos torcedores do Flamengo e passavam gritando, pulando e quebrando o que viam na frente. Só lembro de ver isso e senti uma forte pancada no queixo que veio por trás da porta que abri, não vi o agressor, ele estourou uma lata de cerveja fechada na minha cara que provocou um corte no meu queixo. Caí e fiquei no chão até me recuperar, quando levantei perdi o controle. Saí para o vestiário disposto a reagir mas estávamos encurralados ali. Então eles resolveram recuar e a situação normalizou. Fiquei inconformado, era meu primeiro jogo depois do problema que tive com o Náutico, fiquei um ano parado e logo na estréia isso. Saí do vestiário e fui direto nas câmeras e desabafei. Deu toda aquela repercussão e eu nem sabia que Flamengo e Fluminense estavam com problemas com a FERJ. De início achei as declarações do presidente do Flamengo lamentáveis, mas depois entendi que estava havendo um jogo de interesses.
Aquele conflito foi casual e ocorreu porque um funcionário que ficou responsável pelo portão foi abrir para a esposa de um jogador entrar e não aguentou com o peso do portão empurrado pelo vento. Torcedores que estavam ali olharam para dentro e viram as arquibancadas e o gramado e acharam que ali conseguiriam entrar sem pagar. Erraram, pois ali só dava acesso aos vestiários e deu no que deu. Muita coisa foi dita, mas creio ter sido o acaso mesmo. Fizemos a denúncia, prestei queixa na delegacia, mas não deu em nada, a não ser uma multa para o Macaé e um pedido de desculpas por parte dos dirigentes por não ter garantido nossa segurança.
8. Você sofreu uma lesão bastante séria quando atuava pelo Fortaleza. Um afundamento de crânio quando acidentalmente se chocou com a trave, acabou por ficar internado uns dias e foi liberado. No momento do impacto, o que pensou que tivesse acontecido? É um local bem delicado de lesionar...
É verdade, bem delicado! Eu sofri no Fortaleza as duas lesões mais sérias da minha carreira em um espaço de apenas cinco meses. A primeira contra o Botafogo-PB no Castelão, uma fratura no nasal, jogando pelo Brasileiro de 2015. E a segunda essa do crânio, no primeiro jogo oficial da temporada 2016, pela final da Copa dos Campeões Cearenses. Disseram que fraturei na trave, mas não foi assim, defendi uma falta cobrada pelo Clodoaldo espalmando a bola na trave. Ela bateu na trave, no travessão e caiu atrás de mim, sobre a linha. Foi uma defesa muito difícil e ao espalmar a bola trombei com a trave e caí no chão! Havia batido o pescoço, o peito e a coxa direita contra a trave pois voei para espalmar a bola. Quando caí, fiquei no chão e instintivamente levei as mãos ao rosto. Foi a minha sorte, pois o atacante veio de carrinho para disputar a bola com o Jean, que veio tentando tirar ela, como estava chovendo os dois se lançaram deslizando e o Jean inteligentemente se colocou entre o atacante e a trajetória de onde estava a bola. Com a dividida, empurrou ele para cima de mim, que estava caído ao lado.
Acabou que a trava no calcanhar do atacante entrou direto no meu frontal, ocasionando um afundamento, traumatismo craniano bem no frontal. A sorte é que por estar com as mãos no rosto a pancada pegou por cima da borracha da luva, o que acabou protegendo um pouco. Como faltavam cinco minutos para acabar, levantei e fiquei com uma pedra de gelo na mão para ir passando no local. Quando cheguei no vestiário não estava normal, foi quando senti algo estranho, cuspi na pia e saiu muito sangue. Fiquei assustado, dali fui para o hospital e fiquei mais de dois dias internado sozinho, pois minha esposa não podia deixar nossas filhas para ficar comigo e não conhecíamos ninguém em Fortaleza. Foi uma experiência transformadora, que me deu noção de como confiar mais, pois tive que confiar em médicos e enfermeiros que nunca tinha visto antes. Ali me questionei do porquê não confiar em Deus e então decidi me batizar na igreja onde congregava. Assim o fiz logo que tive a oportunidade.
Não, não é o Petr Cech. |
9. Qual defesa de maior grau de dificuldade que já fez na sua carreira?
Difícil dizer qual, tiveram várias, com grau de dificuldade e importância diferentes. Mas as que mudam a trajetória são bem difíceis. Exige muita atenção, tranquilidade, força, velocidade de reação e técnica. Lembro de uma na Libertadores em 2011, contra o América-MÉX, no Estádio Azteca. Com a altitude a bola fica mais rápida e em um chute no segundo tempo na entrada da área, a bola desviou no Gum se não me engano e mudou completamente a trajetória. Consegui voltar e espalmar. Teve uma assim também pelo Náutico-PE contra o São Paulo-SP no Morumbi, em que a bola ainda quicou antes de eu espalmar. E também pelo Fortaleza-CE contra o Guarani-CE pelo estadual 2016, que exigiu muito de tudo que falei anteriormente, justamente no jogo em que voltei após a lesão no crânio. Tem mais, mas fico com essas três!
10. O Blog 4-3-3 agradece a atenção e deseja toda a sorte do mundo. Faça suas considerações finais, um grande abraço!
Agradeço o carinho de vocês! Desejo o mesmo! É sempre uma satisfação falar do que amo fazer! Grande abraço a todos.