Líbero: de onde veio e para onde foi


Nos primórdios táticos do futebol, a tática que prevalecia no mundo era o WM, esquema que consistia em três defensores, dois meias e cinco jogadores ofensivos. A zaga formada por três jogadores gerava alguns problemas e preocupações: contra os mais avançados jogadores do time adversário os defensores ficavam em situação de mano a mano e uma vez ultrapassados no mínimo um atacante adversário ficaria livre, já que os outros zagueiros ou teriam que guardar sua posição e deixar o atacante avançar sozinho ao gol ou teriam que ir à combate e deixar seu alvo de marcação livre.

Pensando nisso, o suíço Karl Rappan e o italiano Gipo Viani, dois treinadores (independentemente ao outro), decidiram adicionar mais um jogador a zaga, atuando atrás da linha defensiva. Esse jogador teria como objetivo atuar na sobra do stopper e dos laterais impedindo que uma vez que um desses fosse batido o atacante adversário estivesse livre. Ele não teria obrigações de marcação individual, seria "livre" disso (daí o nome da posição, líbero = livre em italiano) mas diferentemente do que se imagina (ou se imaginava) da posição, quase não saía da área de defesa, jogando praticamente grudados ao goleiro e se limitando a apenas rebater bolas e ser uma "sombra" aos zagueiros, nem mesmo eram conhecidos pela técnica exuberante que seus "sucessores" seriam celebrados. Entre os pioneiros da posição estão Alberto Piccinini (que era centroavante até mudar de posição) e Ivano Blason. Com a adição de um jogador a mais na linha de defesa e a criação do líbero, estava criado o catenaccio.

Revolucionando a posição:

Com a consolidação e sucesso do Catenaccio pelas mãos de Nereo Rocco e Helenio Herrera, a figura do líbero ganhava cada vez mais difusão e importância: no Milan despontava Cesare Maldini e na Inter "il capitano" Armando Picchi. Só que diferentemente de seus predecessores os dois jogadores eram conhecidos por uma técnica acima da média e por seu forte espírito de liderança não só comandando a linha defensiva como todos os seus companheiros (não à toa eram os capitães de seus times).
Capitão e muito técnico, Cesare Maldini começou, aos poucos, a mudar a posição, mesmo se limitando defensivamente.

Entretanto, por mais que fossem jogadores muito técnicos, ainda se limitavam à zona defensiva de sua equipe assim como seus "antepassados". Mas logo, logo isso estava para mudar com o declínio do catenaccio, o surgimento da zona mista e uma nova mudança na regra do impedimento. O papel do líbero devido à esses acontecimentos mudaria e um alemão teria papel fulcral nisso.

Der Kaiser:

Apesar de poucos lembrarem, o alemão Franz Beckenbauer era meio de campo de formação, tendo inclusive jogado 2 de suas 3 copas nessa posição (dividindo o centro do campo com Overath), mas depois de alguns testes no final da década de 60, no início da de 70 o jogador se consolidou de vez na posição. Porém, diferente do líbero "à italiana" o Kaiser tinha total liberdade de avançar com a bola dominada, iniciar jogadas e até mesmo se lançar ao ataque, um verdadeiro meio-campista jogando na defesa. Beckenbauer seria o primeiro (ou pelo menos o primeiro a ter tanto sucesso) líbero ofensivo do futebol; curiosamente ele teria se inspirado num companheiro de clube de Armando Picchi, o lateral esquerdo Giacinto Facchetti, um dos primeiros laterais a ter presença constante no ataque. Na conquista em casa da Copa de 74, o alemão viu do lado derrotado um dos outros primeiros expoentes do líbero ofensivo: o holandês Ruud Krol (ainda que tenha jogado boa parte da competição e da carreira como lateral esquerdo).

Já na Itália, com treinadores e jogadores tendo que se adaptar às novas mudanças do futebol, os líberos passaram, inspirados por Beckenbauer, a ser cada vez mais "livres". Logo se virou prática comum recuar jogadores técnicos do meio de campo para a defesa como Agostino Di Bartolomei, Andrea Mandorlini e o grandíssimo Gaetano Scirea.
Scirea é, ao lado de Beckenbauer e Baresi, um dos grandes da função.

Liderados por um "imperador", agora os líberos deixavam de se limitar a serem jogadores de sobra na defesa e passam a ter importância dobrada no jogo. Em tempos ainda de marcação individual cerrada, eram eles os únicos a ter liberdade irrestrita para percorrer o campo iniciando jogadas, dando lançamentos e participando de todas as fases ofensivas e defensivas do jogo.

A santa tríade:

Com a redefinição do conceito de líbero, jogadores que não seguiam o esteriótipo comum de um defensor mas tivessem técnica e visão de jogo acima da média passaram a ganhar chances nos times, como no caso do milanista Franco Baresi. Baresi, que chegou a ser reprovado num teste no lado nerazzuro de Milão por seu porte físico, surgiu no final dos anos 70, evoluiu nas mãos de Nils Liedholm e explodiu de vez nas mãos de Arrigo Sacchi para formar com Beckenbauer e Scirea a santa tríade dos grandes líberos, considerado os maiores e melhores intérpretes da função. Contudo, existiam determinadas diferenças de características entre um e outro que se é importante pontuar:

Beckenbauer era legitimamente um meio-campo na defesa, armava, defendia e chegava como fator surpresa no ataque.

Scirea era o mais versátil, aparentava ser um meia quando estava no meio e um atacante quando estava no ataque.

Baresi era o mais "zagueiro" deles e não por acaso era o que melhor dominava os atributos defensivos. Muitas vezes aparentando ser mais um "zagueiro de saída".

Mudanças na função:

Com a chegada dos anos 80, os esquemas com três zagueiros passaram a florescer e novos intérpretes da posição de líbero surgiam: Se o alemão Uli Stielike e o dinamarquês Morten Olsen seguiam a escola de Beckenbauer (sendo ambos meio de campos de formação) criando, atacando e fornecendo passes longos o hermano José Luís Brown seguia praticamente a velha forma italiana do líbero na Argentina de Bilardo em 86, sendo proibido de avançar ofensivamente a não ser em bolas paradas.
Líbero na Argentina, Brown seguia o "antigo roteiro", subindo menos ao ataque.

Mas outras mudanças também eram vistas, como citei anteriormente, um dos maiores representantes da posição já mostrava certa diferença em seu modo de jogar dos demais. Jogando num time que usava marcação pressão, era avesso a perseguições individuais e usava uma linha de quatro na defesa cada vez mais Franco aparentava ser um zagueiro de saída, ainda que permanecesse tendo funções de um líbero, o milanista fazia muitas funções que hoje seriam atribuídas a qualquer zagueiro de técnica. O líbero passava a ser cada vez menos utilizado em sua forma pura.

Os últimos grandes expoentes:

Foram três os últimos grandes líberos (ainda que divergissem um pouco da ideia de líbero): os alemães Matthias Sammer e Lothar Matthäus e o holandês Ronald Koeman. O primeiro chegou a ser eleito Bola de Ouro em 96, muito por conta de suas excelentes atuações na Eurocopa daquele ano, tinha ótima chegada ao ataque e era meia de formação. O segundo, meio-campo completo e craque incontestável foi com a idade recuando para a posição, costumava se juntar ao meio de campo para gerar superioridade numérica na área, quase um volante recuado. O terceiro, defensor com mais gols na história do futebol. era, além de craque, um jogador com alta capacidade tática, responsável por iniciar as jogadas e aparecer como elemento surpresa no ataque.
Um dos últimos da posição.

Causa mortis:

Muitos na hora de dizer os motivos do desaparecimento do líbero, costumam atribuir isso à falta de zagueiros técnicos no futebol atual, o que é uma imensa bobagem (ou você acha que um cara como Sergio Ramos não teria técnica o suficiente pra exercer a função?). Os motivos vão muito além disso e são bem mais profundos.

A começar, a própria evolução das táticas do futebol ajudou a extinguir a função, com a marcação individual praticamente extinta ter um defensor de sobra se tornou praticamente inútil (ainda que muitos líberos como Krol e Koeman tenham surgido e crescido em culturas táticas de marcação pressão e zonal) e que só atrapalharia na hora da linha de impedimento. Outro motivo é que no meio da década de 90 pra cá se tornou cada vez mais comum os times terem somente um atacante, ou seja, times com dois centrais já teriam superioridade na defesa e não precisariam de mais alguém na "sobra".

Outro ponto, é que diferentemente dos anos 30-90 as posições dos jogadores hoje são bastante fluídas e sem tanta rigidez, os zagueiros hoje não guardam tanta posição e são incentivados a sair com a bola dominada. Não se teria motivo para ter um jogador exclusivo para isso.

As novas funções para os primeiros volantes também ajudam a explicar a "extinção". Peguemos por exemplo o Barcelona em dois gloriosos e distintos momentos:

Se você pegar um jogo do "Dream Team" culé entre 1990 e 1994 perceberá que na maioria das vezes o responsável por iniciar as jogadas e dar o primeiro passe limpo é o já citado Koeman, Guardiola (o primeiro volante e grande jogador) é o responsável por distribuir a bola entre outras funções. Agora, pegue um jogo do Barcelona entre 2009 até hoje, veja que que dá o primeiro passe limpo e inicia as jogadas do Barcelona é Busquets, o que nos faz presumir que os volantes com o tempo passaram a agregar as funções que seriam do líbero à sua posição.

Ressuscitará o líbero ?

Muitas pessoas diziam que os esquemas com três zagueiros estavam acabados mas hoje eles são moda. E muitos fãs da posição de líbero tem esperança que assim como o 3-5-2 e o 3-4-3 ela tenha um revival, ainda mais assistindo a Leo Bonucci jogar pela Juventus. O zagueiro é o que mais se assemelha ao ideal de líbero, ainda que não seja um líbero tão "libero" assim. Impressiona muito como na Euro 16 o jogador atuava como um legítimo da posição, sendo responsável pelo primeiro passe e criação das jogadas, muito por conta da ausência do regista Pirlo, ainda que não desfrutasse da liberdade que Scirea entre outros tinham. Para mim, o futuro da posição ainda que despontem bons jogadores na função, até mesmo no Brasil (R. Caio daria um bom líbero), parece continuar sendo apenas boas lembranças de um tempo (e de um futebol) que não volta mais, limitada a utilizações esporádicas em um ou outro time, longe de seus tempos de glória entre os anos 60 à 90.
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