No picadeiro do futebol...



(Artigo inspirado em discussão proposta por Rudsen Lisboà na comunidade virtual do Blog 4-3-3 no Facebook. Agradecimentos a Mayara Gabaldi e Erickson Almeida.)

Uns dizem que a vida imita a arte. Entre os que discordam, há os que arrematam prontamente: o futebol, ele sim, é a mais perfeita metáfora da vida. Seja como for, há mais coincidências entre arte, vida e bola do que supõe a nossa vã filosofia – da ágora ao botequim.

Um exemplo disso vem dos estudos de palhaçaria, também conhecido como universo clown. Dentre os arquétipos assumidos por palhaços ao longo dos anos e ao redor do mundo, destaca-se a clássica oposição entre dois tipos bastante distintos: o Branco e o Augusto. O primeiro é a voz da ordem, imbuído de elegância, boa educação, graça e fineza em seus movimentos. O outro, por sua vez, foge do lugar comum e traz consigo a hipérbole e o inusitado, provocando o riso e o encanto em um universo ultrarracional.

Craques da bola não deixam por menos e, Brancos ou Augustos, são capazes de assombrar estádios, eternizar jogadas e despertar paixões quando chamados ao centro do picadeiro. Zizinho era branco: conta Eduardo Galeano, no brilhante Futebol ao Sol e à Sombra, que o carioca nascido Tomás Soares da Silva, jogava uma partida contra a Iugoslávia, válida pela Copa do Mundo de 1950, quando teve um gol legítimo anulado. Sem se dar por vencido, repetiu o lance de maneira idêntica. “Zizinho entrou na área pelo mesmo lugar, esquivou-se do mesmo beque iugoslavo com a mesma delicadeza, escapando pela esquerda como tinha feito antes, e cravou a bola no mesmo ângulo”. Segundo Galeano, “ó árbitro compreendeu que Zizinho era capaz de repetir aquele gol dez vezes mais, e não teve outro remédio senão aceitá-lo”.

Oito anos e algumas cicatrizes depois – um inesquecível Maracanazo, diga-se – o craque do Brasil era um Augusto batizado Manuel, mas que atendia pelo nome de Garrincha. “Era um pobre resto de fome e de poliomelite, burro e manco, com um cérebro infantil, uma coluna vertebral em S e as duas pernas tortas para o mesmo lado”, descreve o escritor uruguaio, autor também de As Veias Abertas da América Latina. Os médicos de Garrincha diagnosticaram que o menino nascido em Pau Grande jamais seria um futebolista. Há quem diga que foi maior até mesmo que Pelé – igual em genialidade, talvez ponderem os mais benevolentes com o Rei. De qualquer forma, Garrincha foi o melhor em sua posição no mundial de 58 e o melhor jogador do campeonato no mundial de 62. Mais do que isso: seu futebol exuberante lhe rendeu a alcunha de “Alegria do Povo”.

Avesso às concentrações, afeito à boemia, às mulheres e aos bares – hábito que anos depois lhe custaria a própria vida – Mané Garrincha também teve um de seus mais emblemáticos tentos narrados por Eduardo Galeano. A partida era contra a Fiorentina e fazia parte da preparação da Seleção Brasileira para a Copa do Mundo que renderia ao Brasil sua primeira estrela na camisa: “Garrincha invadiu a área, deixou um beque sentado e se livrou de outro, e de outro. Quando já tinha enganado até o goleiro, descobriu que havia um jogador na linha do gol: Garrincha fez que sim, fez que não, fez de conta que chutava no ângulo e o pobre coitado bateu com o nariz na trave. Então o arqueiro tornou a incomodar. Garrincha meteu-lhe a bola entre as pernas e acertou no arco. Depois, com a bola debaixo do braço, voltou lentamente ao campo. Caminhava olhando para o chão, Chaplin em câmara lenta, como que pedindo desculpas por aquele gol, que levantou a cidade de Florença inteira”.

A genialidade não faz distinção entre Brancos ou Augustos. O gênio apenas faz o seu trabalho. Ademir, o Divino, era Branco. Tal como Pelé e Lionel Messi. Já Ronaldinho era Augusto – isso muito antes de tornar-se sombra de si mesmo. O mesmo vale para Djalminha e Denílson. Fenômeno? Branco. Suas arrancadas fulminantes não negam que seu objetivo era o gol. Romário, que com o peso dos anos deixou de arrancar, também era Branco – um Branco que tirou o fôlego de tricolores, rubro-negros e cruz-maltinos e a paz das defesas adversárias. Democrático, o picadeiro do futebol tem espaço a todos debaixo da lona, mas concede tratamento especial e vida eterna aos seus heróis.
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