Primeiras impressões da Argentina de Bauza

Messi e Bauza os dois principais personagens da seleção argentina atualmente.


Edgardo “Patón” Bauza saiu do São Paulo Futebol Clube para assumir o comando da seleção argentina de futebol ou a seleção principal da AFA ("Asociación del Futbol Argentino”). Em período conturbado da gestora maior do futebol argentino e em um processo igualmente conturbado para a escolha do nome do novo técnico após a renúncia de Gerardo “Tata” Martino, Bauza acabou vencendo a corrida por diversos motivos, mas o principal deles, certamente, foi a impossibilidade de outros nomes (como Simeone e Sampaoli) assumirem o comando máximo da seleção. Esta análise inicial do trabalho de Bauza e as primeiras impressões que se pode tirar vou considerar não somente os jogos em si, mas, também, as declarações e o estilo do treinador.

“Ingenio”: bônus e ônus; escolhas e renúncias

Um primeiro elemento a ser analisado, para além das formações e de qualquer coisa, na seleção argentina é o “ingenio”. “Ingenio” é uma palavra latina e, no latim, as palavras são carregadas um significado tão grande que não basta uma mera tradução, trocar por outra palavra, é necessário quase que explicar mesmo o sentido para que possamos entender, por isso, também, o latim é uma língua econômica, concisa: se diz muito em sentido com poucas palavras. A melhor definição a um leitor de futebol para “ingenio” que eu posso dar é a diferença do Messi real para o Messi dos jogos de vídeo-game ou mesmo de “gerenciamento” do jogo (como FM e afins). Nesses jogos o jogador é “resumido” a “notas” que variam de um mínimo a um máximo, o que funciona relativamente bem para a maioria dos jogadores, mas, no meu modo de ver, não funciona bem para o Messi, pois ele tem algo que somente dentro do campo real, com a bola no pé, é possível. Em outras palavras: é impossível reproduzir o talento do camisa 10 argentino em uma “realidade virtual” de um jogo qualquer. Esse é o “ingenio”, essa capacidade do Messi encontrar a jogada certa, no momento certo, com precisão milimétrica para decidir um lance e, muitas vezes, um jogo ou um torneio é o que os latinos chamariam de “ingenio”, algo que vai além do simples talento. Seria necessário um computador (para os jogos de gerenciamento) altamente desenvolvido ou um controlador (para os jogos de vídeo-game) com o mesmo talento que Messi tem nos pés para reproduzir essa capacidade que a pulga tem.

Pois bem, ter tamanho “ingenio” tem um preço a ser pago, além de ser um grande “bônus” para a sua equipe. E o “ônus” é ter que organizar o time a partir deste atleta: nenhum time tende a funcionar bem se o jogador “ingenioso” do time não funcionar bem e estiver cômodo para jogar. Ademais, não é simples resolver a questão, pois não basta introduzir o jogador na lógica de funcionamento do time sem ele ou idealizar uma fórmula e colocar o jogador dentro dela, como se ele fosse se encaixar naturalmente. Já vimos isso acontecendo com o mesmo Messi tanto no Barcelona (com o mesmo Martino, por exemplo) quanto na própria seleção (quem nunca falou ou ouvir dizer que “o Messi na seleção não é o mesmo do Barcelona”?). Isso acontece porque o sentido da organização de um jogador “ingenioso” é o contrário, não é do todo (o funcionamento da equipe) para a parte (o jogador em particular), mas da parte (o jogador) para o todo (o funcionamento da equipe), é dizer: o “ingenio” do Messi só vai estar totalmente a serviço da equipe se a equipe moldar seu funcionamento enquanto equipe ao “ingenio” do Messi. Isso não significa dizer que o time deve jogar para o Messi, mas que a organização do time enquanto time (incluindo ele próprio) deve ser pensada considerando antes de qualquer coisa deixar cômodo para que o futebol do craque seja desenvolvido. Ele funciona tão melhor quanto tão melhor o coletivo do time funcionar, ele joga para o time e não para si, mas ele joga tão melhor quanto melhor o futebol do time for pensado para que ele se encaixe ali, ele não vai se encaixar no futebol do time se o time não for montado para que o futebol dele se encaixe lá. Isso acontece porque Messi é essencialmente um jogador híbrido,

O monstro argentino é sempre um “falso” alguma coisa: emblematicamente, em seu melhor momento individual e coletivo, Messi foi um “falso 9”, com Guardiola; mas também já havia sido um “falso ponteiro direito”, no próprio Barcelona; e, na seleção, em seu melhor momento com a camiseta alviceleste, foi “falso enganche” tendo Aguero e Higuain como atacantes à sua frente, durante as eliminatórias para a copa de 2014.
O "quarteto fantástico" de Sabella, sempre atropelando os rivais e salvando a seleção de apuros.


É este o dilema de Bauza, que disse, desde antes de ser escolhido, que Messi é sua prioridade, que conta com ele como estrela máxima de sua seleção e também seu capitão, abria, naquele momento, inclusive, a brecha para que Messi, se quisesse, pudesse tirar uma “licença” da seleção, podendo ficar um tempo sem ser chamado. Para Bauza nada disso seria problema, Messi não voltaria apenas e tão somente se não quisesse. Isso é tão verdadeiro como a primeira missão que o treinador deu a si mesmo depois que assumiu a seleção foi pegar um avião e ir conversar com o melhor jogador disponível para a seleção argentina, a conversa foi tão interessante que Messi decidiu voltar à seleção imediatamente. É óbvio que Bauza olha para o craque como “bônus”, como “solução” e como “ponto positivo”, mas o “ônus” são justamente as renúncias que ele deve fazer para contar com Messi plenamente como um indiscutido em seu time titular e essas renúncias consistem justamente em ser obrigado a pensar em acomodar o “ingenio” da “pulga”. Todos os treinadores que ousaram usar o camisa 10 sem, no entanto, resolver o problema do “ingenio” não contaram com o melhor de Messi e nem com o melhor do time.

Legado ou herança
De perfil "baixo" e sempre bonchão, Sabella construiu seu plano para a seleção e quase foi campeão do mundo.


O segundo ponto sobre a “era Bauza” são as duas “eras” que vieram antes dele, as duas últimas “caras”, os dois últimos trabalhos feitos na seleção argentina. Por um lado, o pragmatismo extremo de Sabella. Um treinador criado no Estudiantes, “bilardistas” (o clube e o técnico), mas com certa moderação.

O “bilardismo”, ao contrário do “menottismo”,  é o que entendemos no Brasil por futebol de resultado. O Boca de Bianchi era “bilardista”. Bianchi era (meio) “bilardista”.

O leitor que acompanha a seleção argentina talvez se pergunte: “mas como ‘bilardista’ se Sabella usou Messi, Di Maria, Aguero e Higuain em boa parte das eliminatórias e imaginava ser esse o seu quarteto ofensivo titular?”. É verdade, mas o “bilardismo” não é a mesma coisa que retranca, o “bilardismo” consiste em duas coisas, por ordem: um – o importante é ganhar e não jogar bonito; dois – para ganhar é importante ter um modelo de jogo seguro, não importa a tática, os nomes, etc, importa o equilíbrio e equilíbrio significa saber quem são (e onde estão – ou seja, em que parte do campo jogam) seus melhores: na Argentina os melhores são os atacantes. Logo, bingo, aposte num ataque matador e arrume sua defesa. Foi o que Sabella fez. Sem invenções, uma defesa conservadora (usava um zagueiro de origem como lateral canhoto) com 2 volantes protegendo. E mais, Sabella ainda foi precavido: buscou opções ao quarteto, pois alguma coisa poderia acontecer com eles (como aconteceu) e ele não queria ser surpreendido em um jogo importante por isso. Não deu outra: na copa, com as lesões de Aguero e Di Maria, ele lançou mão de um 4-3-3 defensivo, porque contava com a volta de Lavezzi, para deixar “cômodos” Messi e Higuain no ataque. E assim Messi brilhou na seleção, por algum tempo, mais do que no Barcelona no mesmo período.

O segundo legado ou herança é de Martino.
Martino: também de perfil "baixo" e muito auto-crítico, mas, ao mesmo tempo, cheio de convicções inquebrantáveis.


Taxonomicamente falando, Martino é do reino “menottista” e da família “bielsista”, foi jogador do “loco” Bielsa logo no primeiro trabalho de Marcelo, no Newel’s Old Boys (NOB) de Rosário. Mais do que isso, Martino era a referência técnica e liderança em campo para os garotos que Bielsa trouxe consigo, pois comandava a base da “lepra” (como é conhecido o NOB) já iam muitos anos quando assumiu o time principal.

Martino não considerou tanto o legado de Sabella para além dos nomes (no começo chamava praticamente os mesmos atletas). Mas no campo o time funcionava diferente: defesa mais alta, necessidade de maior aproximação dos volantes aos homens de frente e necessidade de laterais que soubessem jogar ofensivamente.

Tentando “casar” esse estilo mais “barcelonista-dominador” com os nomes deixados por Sabella (com algumas mudanças pontuais) Martino conduziu a seleção a dois rotundos fracassos na Copa América de 2015 e de 2016, perdendo a final contra o mesmo carrasco: o Chile, que venceu seus dois primeiros torneios oficiais quando o tema é seleção.

Essa é a herança de Bauza, que está muito mais para Bilardo que para Menotti.

Bauza busca sempre o equilíbrio em seus times, mas nunca deixa o ataque de lado, não é um retranqueiro, é um resultadista. Não confunda os dois.
Equilíbrio: a palavra mágica no dicionário de Bauza, busca incessante em sua vida de treinador.


Resumindo, os “mandamentos” de “São Bilardo” são: um – o resultado em primeiro lugar; dois – o equilíbrio traz o resultado, podemos concluir que embora o resultado seja o mais importante ele é consequência do equilíbrio e não causa deste. Ou seja, primeiro o técnico equilibra seu time e depois colhe os resultados. É o que Bauza está fazendo na seleção. Sem mudanças bruscas em nomes ou no esquema, sem tentativas de “inventar a roda”, Bauza vai fazendo seu trabalho, acrescentando principalmente nomes de sua confiança (nesse sentido destaco Pratto e Más que jogou com ele no San Lorenzo).

Todo técnico tem seus queridinhos e com Bauza não é diferente. Não esperemos convocações unânimes, até porque, dado a quantidade de qualidade nos jogadores argentinos, ninguém seria capaz de tal proeza. O que podemos esperar é por uma seleção equilibrada, porém letal; defensivamente forte, porém com surpresas interessantes:  Bauza gosta de laterais que dão apoio e vai buscar nomes que façam isso, além do que, é quase certo, que ele usará novamente o assim apelidado “quarteto fantástico” composto por Messi, Aguero, Di Maria e Higuain. Se não for Higuain aposto no garoto de ouro Dybala. Seja quem for, vai dar muita qualidade ao ataque da seleção. É esperar para ver. Seja como for a Argentina vai pra Rússia de “Bauza” em busca do tri mundial, que quebraria o jejum e colocaria Messi unanimemente no “olimpo” dos maiores de todos os tempos.
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