O doce sonho xavante


A cidade de Pelotas, nos últimos anos, está vivendo uma realidade tão fantasiosa que seus torcedores estão chamando de sonho. Doce, eternizado no título desse texto, é um adjetivo apropriado à ilusão em que se encontram os adeptos do Grêmio Esportivo Brasil, pois a cidade é conhecida como a capital nacional dos doces. Ao deitarem suas cabeças nos travesseiros dia pós dia, os torcedores xavantes enxergam o passado como retrospecto: há 3 anos, o clube ainda estava na divisão de acesso do futebol gaúcho, enquanto viam o rival local na elite. Os clássicos Bra-Pel eram realizados apenas em copas de menor expressão, o que conferia ao rival um estigma de superioridade. Porém, o dinamismo do futebol mudou a realidade do clube com uma das maiores torcidas do interior do Rio Grande do Sul.

Para tentar explicar de uma maneira mais objetiva, devemos voltar no tempo direto para 2009, ano do fatídico acidente de ônibus da delegação do clube pelotense, que vitimou o ídolo e artilheiro Cláudio Millar, o zagueiro Régis e o treinador de goleiros Giovani Guimarães, além de deixar vários outros feridos, dentre eles o ex-goleiro Danrlei, ídolo do Grêmio. Após o acidente ainda na pré-temporada, o Brasil não conseguiu se reestruturar psicologicamente, fez uma fraquíssima campanha no campeonato estadual - até então, a única aspiração do clube - e acabou sendo rebaixado à divisão de acesso do Gauchão. A rotina de jogos contra equipes do segundo escalão do futebol gaúcho durou 4 anos, até que o Brasil conseguiu o título e o acesso batendo o rival local São Paulo, da cidade de Rio Grande, vizinha de Pelotas. Vamos dividir os anos de 2013 a 2016 em atos, com títulos em LATIM para passar um ar culto ao leitor.
A torcida comemorou muito o retorno ao primeiro pelotão do futebol gaúcho.

Actus 2013: reditum.

O ano que marcou dois mil e treze anos após o nascimento de Jesus Cristo foi de suma importância na vida dos xavantes. Após manter a base e o treinador do ano anterior, onde o clube acabou sendo eliminado na segunda fase da divisão de acesso, embora tivesse sido líder na fase anterior, o Brasil de Pelotas foi muito bem mais uma vez, sendo vice-campeão do primeiro turno, perdendo a final para o São Paulo de Rio Grande, e campeão do segundo, vencendo o Aimoré. Com a vaga já garantida na elite do futebol gaúcho para cada um dos campeões de turno, a finalíssima servia apenas para mostrar quem seria o campeão da competição. O adversário seria o algoz do primeiro turno, São Paulo de Rio Grande, cidade que dista menos de 60 km de Pelotas e, portanto, alimenta uma rivalidade grande no extremo sul do país. O Brasil aplicou uma goleada no Aldo Dapuzzo, em Rio Grande, e uma vitória pelo escore mínimo em Pelotas confirmou o título para o Xavante: o 5x1 no agregado não deixou dúvidas de que o clube estava em ascensão.

Actus 2014: confirmationem.

Na primeira divisão do gauchão após 4 anos, o Brasil fez uma espetacular campanha, igualando à do Grêmio como a segunda melhor campanha da competição na primeira fase, inferior apenas à avassaladora campanha do Internacional. Para ajudar a auto-estima dos seus torcedores, o maior rival, Pelotas, foi rebaixado para a divisão de acesso em último lugar, numa pífia campanha de apenas 8 pontos em 15 jogos. Na fase de mata-mata, bateu o Novo Hamburgo em Pelotas e acabou sendo eliminado para o Grêmio, em jogo único disputado na Arena em Porto Alegre, pelo placar de 2x1. A derrota, porém, acabou sendo uma dádiva para o clube pelotense, pois acabou sendo considerado o campeão do interior, feito que o credenciou para a disputa da série D do Campeonato Brasileiro do mesmo ano, competição que nunca havia disputado antes, e da Copa do Brasil de 2015, em um confronto que mexeu com a memória dos xavantes mais velhos. Na inédita competição nacional, o Brasil não decepcionou e chegou à final, sendo derrotado pelo Tombense. A vaga à terceira divisão do Campeonato Brasileiro foi garantida após vitória heroica nos pênaltis contra o Brasiliense, na capital federal.
A calorosa recepção depois do acesso.


Actus 2015: passionis.

A essa altura, os torcedores do Brasil de Pelotas já estavam eufóricos com tudo que estava acontecendo com o clube, uma vez que há pouco tempo antes, amargavam jogos contra times de pouquíssima expressão, enquanto agora algumas camisas de um peso relevante já surgiam no horizonte rubro-negro. E por falar em rubro-negro, o sorteio da Copa do Brasil reservou um reencontro que mexeu com os brios dos xavantes: o Brasil iria enfrentar o Flamengo. Para quem não sabe, o grande feito do clube foi chegar às semifinais do Brasileirão de 1985, batendo o Flamengo de Zico e companhia durante a campanha. O histórico esquadrão do clube carioca sucumbiu ante à paixão e pressão dos milhares de xavantes que torciam de maneira inflamada no Bento Freitas, 30 anos antes. No embate, duas vitórias do Flamengo, mas nada que apagasse o brilho de voltar a ver o Xavante enfrentando grandes clubes do cenário nacional - e mais, jogando no Maracanã, com o apoio de mais de mil adeptos, coisa que a dupla Gre-Nal às vezes não consegue fazer, tamanha paixão dos torcedores do clube de Pelotas.

No estadual, a quarta melhor campanha da primeira fase confirmou que o time ainda estava em um bom nível técnico e tático, extremamente competitivo e experiente para a disputa dos campeonato gaúcho e brasileiro que se avizinhavam. Acabou, mais uma vez, sendo eliminado para uma equipe grande da capital, mas desta vez o Internacional, após uma derrota por 3x1 no Beira-Rio. Com o bicampeonato do interior e a vaga para a Copa do Brasil de 2016 garantidos, o Xavante fez uma boa campanha na terceira divisão do futebol nacional, classificando-se em quarto lugar no seu grupo. Na fase seguinte, enfrentaria o campeão do outro grupo, o Fortaleza. Uma vitória simples em Pelotas somada com um empate heroico na capital cearense fizeram o clube conseguir seu terceiro acesso em três anos: o Brasil de Pelotas estava classificado para a Série B do futebol brasileiro, levando o futebol gaúcho para a categoria novamente, que não via um clube do Rio Grande do Sul desde o Juventude de 2009. O trabalho, o projeto e a organização iniciadas lá no ano de 2013, contrastando com as intermináveis má administrações e salários atrasados que rondavam o clube em outros momentos de sua história, davam resultados além do esperados e consolidavam o Brasil no cenário nacional do futebol.

Actum 2016: somnium.

Com o enorme desafio de manter a base e o espetacular trabalho feito pela direção e pelo comando técnico do clube, o Brasil fez uma campanha muito abaixo do esperado no campeonato estadual, classificando-se para a fase seguinte somente na rodada derradeira, ficando com a última vaga, em uma campanha marcada pelo alto número de empates (7, em 13 jogos). Na fase seguinte, acabou sendo goleado pelo Grêmio por 4x1 em Porto Alegre e gerado um grande ponto de interrogação: será que o time de Rogério Zimmermann iria ser figurante na Série B, fadado à brigar pra não cair? Ou, ainda, será que o Brasil será saco de pancadas dos clubes da segunda divisão nacional? A derrota para o Atlético Paranaense na primeira fase da Copa do Brasil acentuou mais a desconfiança sobre o time, que não apresentava um futebol convincente na temporada.
Vice líder e confiante: o clube gaúcho não quer acordar desse sonho.

Essa desconfiança se transformou em sonho: após 23 rodadas e uma campanha espetacular, o Brasil apresentou um futebol competitivo, venceu adversários tradicionalíssimos e transformou as pretensões do clube de apenas manter-se na série B em brigar para ser promovido à elite do futebol nacional. O clube, que hoje está na vice-liderança a dois pontos do Vasco da Gama, ajeitou-se de uma maneira surpreendente e está fortemente na briga pelo acesso. Evidentemente, as coisas podem mudar e o Brasil perder o fôlego, porém só o fato de estar disputando essa vaga (e hoje estar, de fato, entre os quatro melhores) já é digno de todos os aplausos do mundo, pois é um feito impensável há alguns meses, e exponencialmente mais impensável ainda há alguns anos. Os xavantes estão vivendo um sonho com requintes de fantasia, um doce delírio onde acordar não pode ser uma opção.

O futebol do Rio Grande do Sul estava refém de uma terceira força. Se Internacional e Grêmio não conseguem ser protagonistas de nada fora do Rio Grande do Sul há pelo menos 5 anos, uma força emerge do sul, proporcionalmente à sua grandeza, e dá sinais de que possa vir a ocupar essa vaga. Se confirmará o acesso, eu não sei. Mas indubitavelmente, os sonhos mais doces da cidade de Pelotas vão perdurar durante vários dias - e que não ousemos acabar com eles, em hipótese alguma.
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