A filosofia barcelonista acabou?


Depois da debacle frente ao PSG por quatro gols a zero, muito se fala que a filosofia barcelonista sucumbiu. Mais do que isso, alguns nomes (Iniesta, por exemplo) são muito contestados e com razão. Pior: onde está a potente “la masia”, a base do Barcelona que produzia craques em profusão para repor nomes e encorpar o elenco, fazendo com que o clube contratasse apenas jogadores que suprissem carências pontuais? Outrora, o clube catalão tinha um time titular composto quase que completamente por seus “canteranos” e hoje os que chegam mal conseguem ser reservas.

Pequeno prólogo

Antes de mais nada, é necessário fazer uma pequena volta no tempo. Este estilo do Barcelona é oriundo daquela Holanda dos anos setenta e ali começou um longo período de influência da filosofia holandesa no estilo de jogo do Barcelona. Na primeira versão dessa parceria, Rinnus Michels (técnico da “Laranja Mecânica” vice campeã da Copa de 74) foi técnico do Barcelona e teve Cruyff, expoente daquela seleção, em seu Barcelona. Posteriormente, o próprio Cruyff foi ser técnico dos blaugranas. Este segundo momento, com Cruyff como técnico, foi mais decisivo ainda para a influência holandesa na montagem de uma forma de jogar, uma filosofia de jogo do clube como um todo, independente dos técnicos, forjando, desde a base, o estilo idealizado para a equipe principal.

Michels (direita) e Cruyff (esquerda). O primeiro "plantou" a semente e o segundo regou a árvore. 


O auge, porém, dessa filosofia, foi sua, por assim dizer, terceira fase, onde a “máquina” ideal funcionou de modo máximo, com seus “canteranos” chegando ao time principal e com a joia de “La Masia”, Lionel Messi, subindo ao time principal junto de vários outros jogadores de alta extirpe forjados por lá. Comandado por Guardiola, aquele que se revelou como o maior aluno de Cruyff, não copiando o que o mestre ensinou, mas absorvendo e até melhorando a ideia, corrigindo, para aperfeiçoar, o que é necessário e até adaptando certos detalhes às necessidades das mudanças do próprio futebol. Foi, seguramente, o time que mais encantou o mundo e, ao mesmo tempo, logrou títulos, ao menos na história moderna do futebol.
Messi e Guardiola. Gênios que, unidos, foram as peças principais no super Barcelona de todos os tempos.



Guardiola saiu do Barcelona na metade do ano de 2012, final da temporada 2011-2012. Quem assumiria seria seu auxiliar, Tito Vilanova, que, por problemas de saúde, recorrentemente ficou fora do comando técnico da equipe, deixando-a a cargo de Jordi Roura, seu auxiliar. O fato é que a ideia de Guardiola não foi modificada ao longo desta temporada, mas o time sofreu um duro revés na Champions League, um pesado 4-0 ante o Bayern de Munique em seu próprio estádio. E aqui chegamos ao final de nosso prólogo e ao começo de nossa história: este 4-0 foi o final daquele time de Pep, embora o mesmo já não estivesse lá. Significativo dizer que foi uma derrota para o clube que Guardiola viria a treinar. Ali, naquele dia, acabou o sonho real realizado pelo espanhol. Depois, a história mudou, a ideia seguiu sendo uma meta a ser perseguida, embora nunca mais fosse alcançada.

Martino, treinador pedido pessoalmente por Lionel Messi, chegou para comandar a equipe na temporada seguinte e não teve sucesso, saindo para comandar a seleção argentina ao final da mesma. Sua passagem foi discreta e suas ideias, alinhadas com o ideal barcelonista, nunca funcionaram completamente. E, então, chegou Luis Enrique para comandar o clube onde jogou e onde foi formado como jogador. Antigo companheiro de Guardiola e antigo “aluno” de mister Cruyff.

O Barcelona “de” Luis Enrique

Luis Enrique não rompeu completamente com o ideal fundado por Michels, implementado profissionalmente por Cruyff e transformado em realidade material por Guardiola. Mas, ao contrário de Guardiola, mirou muito mais nos títulos, deixando o ideal como meta inatingível, assumindo que nunca seria alcançada e que, acima de chegar nesta meta, o principal seriam os títulos. Com um ataque fantástico, “Lucho” conseguiu, em seu primeiro ano, conquistar tudo o que um treinador barcelonista espera conquistar. Não com o mesmo futebol encantador dos tempos de Guardiola, mas possivelmente forjando um time mais letal, com um dos melhores trios de ataque a história do futebol: Messi, Neymar e Suárez.
Luis Enrique, o técnico que colocou o Barcelona de volta aos títulos europeus, mas que não soube ir além do piloto automático.


O que Lucho não entendeu (e para isso sua primeira temporada vitoriosa foi uma contribuição negativa por ser tratar de um engano) foi a mudança no centro decisivo da equipe comparando a mesma com a de Guardiola. Enquanto no time de Pep este centro era o meio campo, com Messi funcionando, muitas vezes, como um híbrido de meio campista e atacante (o famoso “falso 9”), no time de Luis, com o desgaste físico e a debacle técnica dos dois meias referentes daquele Barcelona “guardiolista” (Xavi e Iniesta), além da chegada de dois gênios do ataque (Neymar e Suárez) para acompanhar Messi no setor decisivo, o centro do time passou a ser o ataque.

Mudança que, embora pareça pouco, é muito. É muito porque quando um time tem seu centro de gravidade e seu principal poder de decisão no meio, aí sim é possível fazer o que a equipe de Guardiola fazia: pressão alta e obsessiva manutenção da posse de bola. Com Lucho, mesmo que ele não tenha modificado o esquema e, possivelmente, pela clara falta de “tato” para entender estas dificuldades do elenco que tem em mãos, não tenha notado a mudança do centro para o ataque, a mudança já se mostrou de modo claro na Champions League vencida por seu time, ou seja, já na primeira temporada, ainda que o time jogasse no “piloto automático”, nos momentos decisivos as vitórias foram construídas com a marcação mais embaixo e pensando o time praticamente em dois setores: os atacantes e os demais. Neymar, Messi e Suárez decidiam, o resto do time corria por eles. Foi assim com o Bayern de Guardiola em Barcelona no jogo de ida pela semi-final da Champions, foi assim contra a Juventus na final, foi assim, inclusive, contra o River Plate no mundial de clubes já no final do ano.

Depois desse primeiro momento, o que viria a seguir seria o agravamento profundo dos problemas encontrados e somente com um treinador que percebesse claramente os defeitos de seu time seria possível superar tais erros. Não é o caso de Lucho, que tem como virtude justamente o pecado que faz com que ele não consiga corrigir o que precisa ser corrigido: a simplicidade e a renuncia pelo protagonismo. Ele é muito mais um “escalador de equipe” do que um “diretor de teatro” que prepara seus atores para tudo e apenas assiste ao espetáculo no dia marcado, como era Guardiola. Por isso mesmo o Barcelona que “acabou” na derrota de 4-0 ante o PSG pela Champions League não foi o “Barcelona de Guardiola” e sim o “Barcelona de Luis Enrique”, embora com a mesma diretriz de jogo, ambas as equipes funcionavam de modo diverso e precisavam de repaginadas também (e por isso mesmo) diversas.

O atual elenco do Barcelona precisa marcar mais embaixo no campo, fazendo com que o meio campo funcione mais como um anteparo para a defesa do que como o primeiro espaço de criação. A criação e a definição devem ser passadas ao ataque. Para isso, marcar mais embaixo também favorece ao ataque barcelonista, pois, recuperando a bola mais distante do gol, com o rival saindo, menos jogadores estarão posicionados para recuperar a bola e, assim, impondo velocidade unida à qualidade do ataque, chegará ao gol mais facilmente e com menos toques. O que obriga, também, o time a atacar com menos jogadores dando a possibilidade para que seja mais vertical. A ideia geral da “filosofia barcelonista” não irá exatamente ser jogada no lixo se o time passar a jogar assim, será repaginada, adaptada e um tanto quanto modificada, pois ela representa apenas uma ideia abstrata e não as necessidades reais da atual equipe.
Suárez, Neymar e Messi, os três gênios que precisam estar cômodos para decidirem.


Portanto, o que acabou não foi o “Barcelona de Guardila”, este acabou nos 4-0 contra o Bayern, no longínquo ano de 2013. O que acabou foi o Barcelona “de” Luis Enrique, isso sem ter sequer conceitualmente haver começado, não como ideia, não como algo planejado na cabeça de seu “mentor”. Ele foi se arrumando, se arranjando, foi sendo forjado e talhado na prática, dentro do campo, no automatismo já memorizado pelos jogadores em relação a uma continuidade conservada ao longo de quase uma década completa e repassada aos novatos que chegaram. 

Por fim, como Luis Enrique já declarou que sairá do comando técnico do Barcelona, outro ciclo técnico começará na próxima temporada, resta saber se o novo comandante irá iniciar um “novo Barcelona” ou tentará apenas continuar o trabalho de Luis Enrique que, conceitualmente, sequer começou pela falta de ideias do mesmo.
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