Era um dia cinza. Nublado, nuvens por todo o céu. Uma inquietante espera pela chuva pairava no ar. O campo era de terra batida. As traves de madeira podre e as linhas marcadas com restos de cal das construções dos barracos.O goleiro não usava luvas. As vezes não usava nem as mãos. Quem tomava o primeiro gol tinha a desonra de retirar as camisas. Os trovões não assustavam. As camisas encardidas de lama por vezes estavam encardidas também de sonhos. O primeiro sonho.
Assim era o clima a primeira vez que vi ele jogar. Flávio era daqueles meninos que respiravam, suavam, almoçavam e jantavam futebol. Seus olhos de tanto perseguir a bola, já tinham o formato de uma. Quem o olhava nos olhos, jurava que podia enxergar duas pelotas de capotão nas retinas do menino. Seu cabelo descuidado e oleoso expunha a verdadeira preocupação do craque. Diziam as más línguas que o herói não tinha uma afeição com o chuveiro, tampouco com xampu. O corpo franzino e esguio canalizava a vontade de jogar futebol pelos dedos das mãos. Era evidente a inquietação dele quando não estava perto dá bola. Estava incompleto. Tremia. Mexia. Gesticulava. Tirava o cabelo do olho. Com ela nos pés era calmaria. Era paz, fluía pelo campo irregular como um patinador desliza na pista. Juro que podia-se ouvir duas canções. Uma quando ele estava com a bola e outra sem. Conduzindo ela era uma bossa nova, suave. Esperando por ela era um metal, forte, inquieto, rebelde.
Todos no campo da Burquinha tinham medo de Flavinho. Diferente do medo que se cultivava pelas pessoas numa comunidade violenta, o medo do Flavinho era de levar um drible desconcertante, vergonhoso, humilhante. Ninguém queria sair de casa e voltar com as penetráveis marcas dá impiedade futebolística do rapaz. Ele de uma forma inenarrável adentrava na cabeça de quem tentava o marcar. Sem olhar nos olhos ele conduzia com passadas largas até chegar no marcador, e então num movimento que uma gazela da savana sentiria inveja, encurta a passada e cuspia e escarrava na cara do tolo que tentara para-lo.
Ainda é quente a lembrança dá primeira caneta que tomei de Flavio no campo da Burquinha. A chuva começa a cair, Flávio parte com ela dominada. Imperando sobre o campo como um pirata impera em águas inquietas. Navegava os mares da Burquinha com a bola beijando o tênis furado a cada instante. Dois marujos já haviam sido jogados ao mar. O barco de 1,70 de altura vinha em minha direção. Na ansiedade, cometi o pior dos erros. Fui para o bote. Uma gota de chuva cai em meu olho, talvez tenha sido Deus tapando meus olhos para o que viria a seguir. Abri as pernas para recuperar a bola. Quando abri os olhos, só vi Flávio com a bola dominada e ouvi o coro de risadas e deboches sobre o escárnio que acabara de acontecer.
Era ele e a bola. A bola e ele. De forma quase que homogênea. Os dois se entendiam bem. Era amor. Puro. Inclusive, acredito que a bola amava mais ele do que ele a amava. Haja visto as pancadas miríades que ele distribuía por seus gomos. Poucas vezes se tem a oportunidade de ver a genialidade diante de seus olhos. Flávio era definitivamente o que se pode chamar de gênio. Nasceu para distribuir canetas. Fomentar sonhos com as duas pernas. Surreal.