Existem coisas que a razão e a lógica não explicam. Às vezes, faz-se uso do misticismo e do folclore para ilustrar as situações que o mundo físico proporciona. Talvez seja inconveniente para muitos, mas acaba se tornando, ao menos, poético e garboso.
Numa dessas investidas incongruentes com a lógica, reza a lenda que o rei do delta blues, Robert Johnson, fora consagrado com dons para tocar seu violão, utilizando técnicas inovadoras, nunca as revelando ao público. Entretanto, antes de começar a expor sua grande capacidade de ressoar melodicamente seu instrumento de cordas, Johnson sequer sabia manejá-lo. Sua incrível perícia com o violão veio através de um pacto sombrio, vendendo sua alma ao diabo, o que acabou causando, para aqueles que compraram a história, sua precoce morte após um concerto, em 1938.
Apesar da obscuridade da lenda, quase 80 anos após a morte de Robert Johnson, parece que outra dessas evoluções mágicas e inexplicáveis acabou pousando na Catalunha. Seja lá qual foi o pacto feito para alcançar essa graça, Sergi Roberto, meio campo do FC Barcelona, começa a demonstrar um progresso inimaginável em suas capacidades futebolísticas.
Assim como Johnson, que não sabia tocar violão, Sergi não aparentava saber jogar futebol. Sem demonstrar qualquer fundamento aguçado que o destacasse e sempre parecendo estar perdido no relvado, o atleta blaugrana era muito contestado por ser aquele jogador "sem sal", que não agregava em nada, ainda mais se falando de um clube do calibre do Barcelona.
Sergi nunca fora um diamante das categoria de base. No time B, atuava discretamente. Era chamado apenas esporadicamente para figurar na equipe principal - na maioria das vezes, em partidas das fases iniciais da Copa do Rei. Na temporada 13/14, não mais jogou pelo time secundário dos culés, e passou a atuar com mais frequência. Entretanto, era um reserva de uso totalmente emergencial, quando nenhuma das opções estavam disponíveis. Seu futebol apático acabava sendo um empecilho, e traduzia a falta de elenco que o Barcelona teria na temporada seguinte.
Talvez o orgulho pela La Masia ou a sanção estabelecida pela FIFA na temporada passada tenha induzido a equipe a manter o camisa 20 no elenco. Ponto para os culés, que agora possuem um jogador de polivalência incrível, além de uma técnica cada vez mais refinada.
Capaz de administrar a situação em um momento inusitado da temporada, Sergi se destacou quando Luis Enrique decidiu deslocá-lo para a lateral direita. Uma decisão espontânea, causada pela lesão de Daniel Alves na primeira rodada do Campeonato Espanhol, fazendo com o que o meia de origem tivesse que entrar ainda no primeiro tempo em uma função nova. A atuação do atleta foi acima da crítica. Preciso nos avanços, nas interceptações e, inclusive, nos dribles, Sergi Roberto mostrou um aprendizado quase que osmótico, como se já atuasse naquela faixa de campo há 20 anos.
Naquele dia, é provável que uma lâmpada tenha iluminado a cabeça do treinador barcelonista, e Sergi passou a atuar de lateral mais vezes. Ninguém hesitaria em dizer que ele havia achado seu lugar e que nunca mais retornaria para o meio de campo, mas é nesse momento que seu futebol dá asas para que a imaginação crie alguma maneira de explicar o fenômeno de mutação que ocorreu com o atleta.
Muito por conta da lesão de Alves, da falta de técnica de Adriano e da indisponibilidade de utilizar Aleix Vidal, o camisa 20 continuou sendo escalado seguidamente como lateral direito. Entretanto, começou a mostrar uma qualidade jamais percebida antes quando voltou a fazer a função de meia cancha. Apesar de estar presente na derrota contra o Celta de Vigo por 4-1 como meio campista, o atleta iniciou uma sequência de excelentes jogos na faixa central, como contra o Getafe, onde deu duas assistências - uma delas na qual parecia realmente estar possuído -, e Rayo Vallecano ambos pela La Liga.
Não bastasse a recuperação de seu futebol na sua posição de origem, o atleta também foi sublime em atuações pelas pontas, suprindo a falta de qualidade dos reservas do trio MSN, Munir e Sandro. Em destaque, sua atuação contra o Real Madrid, na imponente goleada por 0-4, Sergi teve a responsabilidade de atuar na ponta direita, substituindo Lionel Messi, que voltava de lesão. Assim o fez, e acabou sendo um dos destaques na partida.
Pela Liga, Sergi apareceu em 16 das 20 partidas do time na competição, e em 11 foi titular. A título de comparação, o meia fora titular apenas 5 vezes pelo Barcelona no campeonato antes da presente temporada. Na de estreia, 2013/2014, jogou mais do que na subsequente: foram 17 jogos, sendo 1 como titular contra 12 jogos em 2014/2015, jogando desde o apito inicial em 4. Nas demais competições, sua presença também é constante.
Pela UEFA Champions League, atuou em 5 dos 6 jogos (4 como titular), estando ausente apenas na última rodada, frente ao Bayer 04, por conta de uma lesão. Uma curiosidade peculiar: Sergi Roberto jogou nos três setores do campo na competição. Na defesa, como lateral direito (Roma, fora de casa); no meio de campo, pela direita (Bayer e BATE, ambos fora de casa) e pela esquerda (Roma, em casa); e no ataque, como ponta direita (BATE, em casa).
A oportunidade que o catalão vem aproveitando é digna de atenção. Talvez, e isso é fruto da magnitude do clube o qual defende, Sergi Roberto deva bater asas para um lugar onde possa exercer maior protagonismo, ou, ao menos, titularidade absoluta. Com sua demonstrada polivalência e aprimoramento da técnica, é capaz de conquistar isso com facilidade.
Agora, como esse novo Sergi se consolidou? Melhor mantermos isso no mundo das lendas, numa gaveta ao lado da de Robert Johnson, pois seria excessivamente calunioso dizer que víamos algum aproveitamento em seu futuro antes da atual temporada.