Na nossa memória recente, Gales se resume a Gareth Bale e Ramsey. Para alguns mais antigos Ryan Giggs e Ian Rush são os maiores da história do país e com toda certeza haverá alguém que se lembrará do saudoso Craig Bellamy. A verdade é que de fato todos os citados foram/são jogadores de renome internacional e que deixaram o nome deles grafado no esporte Galês.
Mas como em toda boa discussão entre “quem foi melhor”,
surge um desconhecido do grande público e até de alguns especialistas, um cara
que tinha nome de príncipe e no campo era um maestro, estou me referindo a John
Charles, pra muitos o melhor jogador da história do País de Gales.
Charles nasceu em Cwmbwrla, (sim, nome bem estranho) um distrito
de Swansea. Já na escola, Charles passou a jogar pelo time da sua cidade, o
Swansea Town que depois viria a se tornar Swansea City, foi por lá que o galês
começou a brilhar ainda jovem. Porém por conta da sua idade, o clube galês não
o promoveu ao time principal.
Seu futebol acabou chamando a atenção do Leeds United, que o
convidou para um período de testes. Charles deixou os olheiros do clube de Yorkshire
impressionados. Sua contratação foi efetuada em 1948, quando John ainda tinha
apenas 17 anos. Um passo importantíssimo na carreira do galês.
Sua estreia pelo time principal jogando como meia central se
deu no dia 19 de abril de 1949 frente ao Queen of the South. O Queen possuía o
atacante escocês Billy Houlliston que 10 dias atrás havia feito parte da
vitória da sua seleção frente a Inglaterra dentro do Wembley por 3 a 1. O jogo
terminou 0x0 com direito a declaração emblemática do avançado escocês: “O
melhor meia central que já joguei contra”, referindo-se a Charles.
O estopim do sucesso |
John jogou alguns jogos da liga porém em 1950 foi obrigado a
se afastar do Leeds em função do serviço nacional obrigatório, voltando apenas no final de 1951.
Já acostumado com o time e com a torcida, John desencantou
no clube inglês. Fazia partidas primorosas e por vezes regia o time como poucos
no mundo tinham a capacidade de fazer. Mas havia uma discussão bastante
pertinente na mídia, sobre onde Charles deveria jogar. Obviamente isso não era
um obstáculo para as vitórias, porém a polivalência do galês era algo
completamente irreverente pra época. Jogou na meia direita, como segundo
atacante, como pivô, como meia central. Não importava onde jogava, sempre fazia
com excelência.
Na temporada 55/56 foi escolhido capitão do time de
Yorkshire, coincidentemente foi o ano em que o clube conseguiu o acesso para a 1ª divisão inglesa, John foi importantíssimo na campanha onde anotou 29 gols em 42
partidas.
Na temporada seguinte fez números ainda melhores, foram 38
gols em 40 aparições na temporada. Com esse desempenho estrelado, Charles
assegurou a estabilidade ao Leeds na primeira divisão, sendo um dos maiores
responsáveis pela 8ª colocação do clube inglês.
Era tão ídolo da torcida que seu nome se confundia com o do
clube, sendo por vezes chamado carinhosamente de John Charles United pelos
adeptos. Seus feitos são grandiosos, 150 gols com a camisa do clube, sendo até
hoje o segundo maior artilheiro da história do Leeds, apenas atrás de Peter
Lorimer.
Porém, sua estadia em Yorkshire estava com os dias contados.
Logo após o fim da temporada 56/57 Charles acabou sendo contratado pela gigante
italiana Juventus em uma transação recorde na época. Algo em torno de 65 mil
libras, quase dobrando o recorde anterior.
Não faltava gol quando Charles estava em campo |
Em sua primeira temporada em Turim, Charles anotou nada mais
nada menos que 28 gols, se sagrando artilheiro da séria A daquele ano. Lá foi apelidado
pelos torcedores de “Il Gigante Buono”. Em português significa “O gigante
gentil”.
Esse apelido se deu pelo fato do galês não ter nenhum registro de advertências ou expulsões na sua carreira, feito notável até mesmo
nos dias de hoje. Como media 1,88 de altura, o apelido acabou virando febre
nacional.
John ficou por 5 anos na Juventus, dentro desses 5 anos
venceu 3 vezes o campeonato italiano e 2 vezes a copa da Itália. Se faltavam
títulos na passagem pelo Leeds, na Juventus isso foi compensado. Marcou 93
tentos em 155 partidas pela velha senhora, além de ter sido eleito o 3º melhor
do mundo no Ballon´Dor de 1959, ficando na frente de nomes como Gento, Puskas,
Yashin, Liedholm e Fontaine. Só ficando atrás de Raymond Kopa e da lenda
atemporal Alfredo Di Stéfano.
Em 62, já com 31 anos e cada vez mais se distanciando do auge que o
consagrou, Charles é vendido por 53 mil libras para o Leeds, seu antigo
clube. O icónico técnico Don Revie acreditava que o retorno ao clube que o
lançou pro mundo poderia trazer de volta a magia que se imortalizou na cabeça
dos torcedores do clube de Yorkshire. Porém não foi o que ocorreu.
Sem conseguir se adaptar novamente ao futebol da liga
inglesa, John teve um desempenho fraquíssimo anotando apenas 3 gols em 11 jogos.
Sem espaço e com medo de queimar sua imagem de ídolo, o galês acabou sendo
vendido novamente. Voltou a Itália, dessa vez pra jogar na Roma, que o comprou
por 70 mil de libras.
Infelizmente o britânico já não era o mesmo, com
performances medianas não correspondeu o investimento esperado e voltou a
Inglaterra, agora sem muito alarde para jogar no Cardiff City. onde ficou até
1966. Após isso atuou pelo Hereford United onde jogou relativamente bem,
considerando que o clube disputava as divisões inferiores do seu país, anotou
80 gols em 173 jogos. Terminou sua carreira no Merthyr Tydfil em 74, um clube de
seu país natal.
Já pela sua seleção Charles começou bem cedo, estreou com
apenas 18 anos de vida. Já com 27 anos e ídolo da Juventus, John levou Gales a sua
primeira e única copa do mundo, em 1958. Curiosamente a única copa do mundo que
reuniu todos os países do Reino Unido na mesma edição (Escócia, Irlanda do
Norte, Inglaterra e País de Gales). O irmão mais novo de Charles, Mel também
fazia parte daquele elenco galês que disputou a competição.
Uma campanha de respeito pra um debutante em copas |
Surpreendentemente Gales passou invicto pela fase de grupos,
arrancando empates inesperados contra a futura vice campeã Suécia, contra o
encardido México e contra a ainda fortíssima Hungria de Puskas, que vinha de um
vice campeonato em 54, o famoso milagre de Berna. Como Hungria e Gales
empataram em número de pontos, foi marcada uma outra partida entre as duas
seleções onde quem perdesse, estaria eliminado do torneio. O resultado foi
ainda mais surpreendente, 2x1 para Gales.
Como nem tudo são flores, John que havia feito o gol de
empate contra a Hungria na primeira partida, se machucou no segundo jogo, sendo
assim incapaz de jogar a partida seguinte, contra o Brasil. Sem seu principal
craque e com um jovem chamado Pelé do outro lado, Gales acabou sendo eliminado
da competição com um gol do rei. O primeiro gol do Pelé em copas foi justamente
neste jogo, que terminou com vitória brasileira pelo placar mínimo. Brasil que
viria a ser campeão posteriormente.
Jimmy Murphy, treinador de Gales na época deu uma declaração
onde dizia: “Se John Charles estivesse em campo, talvez vencêssemos”
Charles terminou sua carreira na seleção com 38 partidas e
15 gols marcados, nada mal.
Como jogador aposentado, Charles viu seu legado ser reconhecido
inúmeras vezes. Em 2001 foi condecorado como comandante do império britânico
sendo apontado também como cavalheiro pelos serviços ao esporte. Em 2002 se
tornou vice presidente da associação de futebol de Gales. Em 2003 esteve
envolvido na independência da cidade de Swansea.
Foi quem inaugurou o Hall da Fama do futebol inglês em 2002.
O estádio reserva usado pelo time B do Leeds que antes de chamava The South
Leeds Stadium passou a se chamar John Charles Stadium em sua homenagem e ainda
há uma rua com o nome de John Charles Way nos arredores do estádio do Leeds.
Lamentavelmente, em 2004 Charles sofreu um ataque cardíaco e
acabou tendo que amputar uma de suas pernas por motivos de circulação. Ainda
que tenha lutado muito, sua debilitação se alastrou e o astro britânico acabou
falecendo um mês depois em um hospital de Yorkshire. John morreu com 72 anos. Em seus últimos dias de vida, diziam que ele costumava ir ver o Leeds jogar.
Charles podia ser um regista do meio campo, um garçom para
atacantes ou um striker nato, isso não fazia muita diferença pra ele, o jogo do
galês sempre saia perfeito. O britânico impressionou e ainda impressiona
muitos até hoje pela sua calma dentro do relvado. Sua entrega aliada a uma
polivalência e uma técnica apurada faziam dele praticamente o jogador definitivo.
Abaixo algumas declarações de quem o viu jogar.
Sir Bobby Robson o coloca no patamar dos melhores de sempre,
a nível de Pelé e Maradona. Pra ele apenas Charles conseguiu ser world class em
duas posições completamente diferentes.
“Incomparável, John não é apenas um dos melhores jogadores
que eu já vi, John é um dos melhores homens que já pisaram no gramado.”
- Sir Bobby Robson
“Eu preciso dizer que John Charles era de outro mundo por
conta de suas qualidades humanas. É uma das pessoas mais honestas que já
conheci, ele fazia o time inteiro ficar unido. Qualquer reclamação ou argumento
era cessado assim que ele aparecia em campo ou no vestiário.”
- Giampiero Boniperti, o capitão da velha senhora quando o
galês chegou em Turim.
Sivori, Charles e Boniperti. A máquina da Juventus. |
“Se fizermos um time apenas de britânicos, ou até mesmo dos
melhores do mundo, Charles precisa estar em ambos”
-Jimmy Greaves, lenda do Chelsea.
“Charles tinha o time dentro dele. As pessoas frequentemente
me perguntam quem é o melhor jogador que eu já vi, geralmente eu respondo
Eusébio, Di Stéfano, Cruyff, Pelé ou Bobby Charlton. Mas o jogador mais efetivo
que já vi e que faz a maior diferença para todo um time, este com certeza é John
Charles”
- Jack Charlton
“Se você tiver 22 jogadores em campo como John Charles, não
será preciso um juiz para controlar o jogo”
- Clive Thomas, juiz aposentado.
Em Turim seu impacto é ainda maior. Em 97 foi eleito o
melhor jogador estrangeiro a ter jogado com a camisa da Juventus, superando
craques como Platini, Zidane e Boniek. Tempos depois também foi eleito o melhor
estrangeiro a ter jogado o campeonato italiano, superando nomes como Van
Basten, Maradona e Zico. É sem sombra de dúvidas, um dos maiores da história da Juventus.
Charles sendo agraciado pela torcida da Juventus, já com certa idade |
Infelizmente, é muito pouco lembrado pela mídia esportiva, como muitos
outros que já documentei no ícones, porém de todos esses, talvez ele seja o
mais completo.
Abaixo um dos raros vídeos da lenda britânica
Il Gigante Buono vive!