1996. A Ferroviária fazia a pior campanha de sua história na Série A1 do Campeonato Paulista e seria rebaixada, após quase três décadas consecutivas na elite. Com apenas 12 pontos em 30 jogos, amargou o último lugar do torneio. Era o início de uma tortura que iria durar praticamente duas décadas. O clube, tão acostumado com momentos gloriosos no passado, corria sério risco de falência. Anos de trevas, de grená desbotado, de orgulho ferido...
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Um dos únicos bons resultados do Paulista de 1996. Ferroviária 2x2 Corinthians (Imagem: Arquivo Folha) |
A medida que praticamente salvou a
Ferroviária da falência foi tomada em 2003. Em conjunto com a prefeitura da
cidade, a equipe declarou oficialmente a administração como clube empresa. Era
o nascimento da Ferroviária Futebol S.A. O objetivo inicial da nova
administração era quitar as dívidas astronômicas e buscar os acessos às
divisões superiores em pouco tempo. A equipe figurava na Série A3.
A busca por patrocínios era frenética
e grandes empresas da cidade foram as responsáveis iniciais pelo investimento
monetário. O clube araraquarense também
buscou parceria com clubes de outros estados, sendo a principal dela acertada
com o Atlético-PR, em meados de 2004. O acordo foi possível devido a boa
relação entre o prefeito araraquarense na época e o presidente do Atlético PR, consistindo em "intercâmbios"
entre atletas das categorias de base e acordos de publicidade. Mal sabiam o
quanto ela viria a ser importante.
Em 2006, a Ferrinha não conquistou o
acesso para a A2 no quadrangular final. No entanto, conquistou a Copa Paulista.
Era uma demonstração de força que não se via a muito tempo. A nova
administração como clube-empresa começava a dar resultados. O retorno para a
segunda divisão paulista era questão de tempo.
Apesar da melhoria óbvia na questão
financeira, a peregrinação pelas séries inferiores pareciam não ter fim. O
acesso à Série A1 batia na trave ano após ano. A penumbra sobrenatural pairava
sobre a Arena da Fonte, onde a Ferroviária perdia seus principais confrontos na
busca pelo acesso.
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Dupla do grupo Visões Sobrenaturais visitou a Arena da Fonte em busca de espíritos (Imagem: Moisés Schini) |
Bolas na trave, atuações milagrosas
dos goleiros adversários, erros individuais grotescos. Até exorcista e
caça-fantasmas trouxeram para a Arena em 2013, quando a equipe quase caiu
novamente para a Série A3. O técnico Milton Mendes, ex-Paraná Clube, foi
contratado pela equipe em 2014 após a demissão de Ailton Silva na Copa
Paulista. Com a indicação do Atlético-PR, é claro.
O jovem técnico ostentava vários
cursos da UEFA e anos de estudo no exterior. Nada que empolgasse a sofrida
torcida da Ferroviária, que acumulava 19 anos longe da elite estadual. O
desempenho da equipe no restante da Copa Paulista foi ruim e Milton Mendes já
era questionado... Apesar disso, afirmou em entrevista ao principal jornal da
cidade no mês de janeiro: "A Ferroviária brigará pelo título e eu garanto
o acesso em 2015". O ceticismo não diminuiu.
Antes de indicar Milton Mendes, o
Atlético-PR quase terminou a parceria com a Ferroviária. A relação entre os
clubes estremeceu após a equipe paranaense manifestar o desejo no meio campista
Renato Cajá, campeão da Copa Paulista pela Locomotiva em 2006. Apesar da preferência do
Atlético-PR no negócio, a Ponte Preta atravessou as negociações e anunciou o
meia ainda em 2007.
A partir daí, a relação entre os
clubes se abalou e o Atlético-PR diminuiu drasticamente os contatos com o clube
araraquarense. Até 2014. Com a contratação do ex-diretor de futebol do Arapongas,
Sidiclei de Menezes, estreitou novamente os laços entre clubes, e de forma
ainda mais contundente. Tanto que, em 2015, cedeu vários atletas da equipe para
a disputa da Série A2. O elenco de Milton Mendes teria o reforço de jogadores
do Furacão.
A estreia veio e não agradou. Muita
desconfiança veio a tona e a equipe grená não era favorita ao acesso nas
primeiras análises do campeonato. No entanto, o que se viu no decorrer do
campeonato foi um verdadeiro massacre. Uma equipe compacta, que prezava pelo
apoio maciço dos laterais e com exploração tática ofensiva do meio campo.
Intensidade. Não havia palavra melhor
pra definir o escrete grená. Um time vibrante, intenso e incisivo durante 90
minutos. A saída com a posse começava no goleiro Rodolfo, geralmente com os
zagueiros. Com a bola, a Locomotiva atacava em blocos, realizando sobreposições
envolvendo os laterais (Roberto, atualmente no CAP, e Paulo Henrique, no
Linense, se destacavam nisso) e tabelas rápidas com os volantes.
A saída de bola de Milton Júnior
trazia equilíbrio tanto ofensivamente quanto defensivamente. O veterano Danilo
Sacramento era o responsável pelo passe de qualidade e armação das jogadas na
frente. O elemento surpresa? Um tal de Alan Mineiro, hoje no Corinthians.
O papel tático de Alan Mineiro era
surpreender. Hora jogava quase como um terceiro atacante, auxiliando Tiago Adan
e Elder Santana. Hora pintava como armador ao lado de Sacramento. Quando o jogo
era truncado, atuava quase como um ponta, buscando a tabela com os volantes e
priorizando as finalizações de fora da área, sempre co muita qualidade.
O pivô de Tiago Adan como centroavante
e a dedicação defensiva de Elder Santana e Fio (alternavam entre titularidade e
reserva) era essencial para a recuperação da posse ainda no campo de ataque.
Sem a bola, a equipe grená pressionava ostensivamente a saída de bola
adversária, principalmente em casa. A posse de bola, em grande parte dos jogos,
era maior que a do adversário. O preparo físico da equipe também era destaque.
Outra coisa sentida com maestria por
Mendes foi a variação tática durante a competição, principalmente em jogos
difíceis. Após derrota contra o Batatais, chegou a jogar com três defensores e
três meias com a adição de Renato Xavier na equipe no lugar de Cleidson. A
variação deu certo e a equipe venceu o Mirassol fora de casa, em um dos
jogos-chave do torneio.
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AFE comemora o título da Série A2 de 2015 (Imagem: Benedito Reginaldo Viviani) |
A Ferroviária conquistou incríveis 15
vitórias em 19 jogos, marcou 36 gols (segundo melhor ataque) e sofreu apenas 12
(melhor defesa). O equilíbrio da equipe era impressionante e chamava a atenção
pela disposição tática. Foi a melhor campanha de um time na Série A2 com o
formato atual. A gloriosa Locomotiva estava de volta aos trilhos!
Milton Mendes colocou seu trabalho a
prova na Ferrinha quase que como um teste para assumir a equipe. Além da
dedicação tática, sua coragem chamou a atenção.
Não hesitava em mudar o esquema durante a partida. Eram comuns as
substituições ainda no primeiro tempo para corrigir erros. O professor tinha
qualidade... Cumpriu sua promessa e se tornou o herói de uma sôfrega cidade,
que ansiava por ver seu time na elite, com direito até a carta recebida da
torcida com pedido de desculpas pela desconfiança.
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Milton em treino da Locomotiva (Imagem: Leonardo Fermiano) |
O Atlético-PR requisitou os serviços
de Milton Mendes ainda com a Série A2 em andamento. No último jogo do
campeonato, o professor já estava em terras paranaenses. O que seria da
Ferroviária no segundo semestre, fora de qualquer série do Campeonato
Brasileiro? Disputar a Copa Paulista? A diretoria optou por não participar da
competição e buscar a estruturação para a disputa da A1.
Uma das notícias mais assustadoras foi
o lançamento do regulamento da Série A1 de 2016. O anúncio de que seriam seis
clubes rebaixados. 30% dos clubes disputariam a Série A2 em 2017. O anúncio
caiu como uma bomba na cidade e o clima de apreensão era imenso. O elenco
formado estará a altura? O retorno durará apenas um ano? O mistério para
definir o novo técnico também gerou inquietação.
No âmbito administrativo, sucesso. As
finanças estavam equilibradas depois de muito tempo. A expectativa é que o time
grená feche 2016 sem dívidas após décadas. O planejamento fora de campo foi
muito bom, novas parcerias foram realizadas (a principal com o Atlético-MG), e
aos poucos o horizonte se tornava menos obscuro.
O novo comandante foi anunciado. O
português Sérgio Vieira comandaria a equipe da Ferroviária no Campeonato
Paulista da Série A1, cedido pelo Atlético-PR. O jovem treinador seguia a mesma
filosofia de Milton Mendes, com cursos da UEFA e trazendo a promessa de
inovação tática para a equipe.
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O técnico português Sérgio Vieira (Imagem: Leonardo Fermiano) |
Além de Vieira, o clube paranaense
enviou alguns atletas para a Locomotiva, assim como o Atlético-MG. Reforços
pontuais, um elenco jovem e um técnico buscando experiência. Combinação
perigosa para um time que acabou de retornar à elite do estadual. No entanto, a
lembrança do trabalho de Milton Mendes ainda pairava. Os torcedores resolveram
dar uma chance para o projeto, sem muitas críticas iniciais.
A estreia se deu contra o novato Água
Santa, em sua primeira participação na elite paulista. O primeiro jogo
geralmente é tenso e o futebol apresentado pelas duas equipes passava longe de
ser o melhor. No entanto, a tática da equipe grená chamava a atenção
pela disposição em campo. O time não dava chutões de maneira alguma, mesmo
pressionado. Rodolfo, novamente, era o responsável pela saída de jogo com os
pés.
A Ferroviária melhorava a cada minuto
na partida e pressionava o time da casa, que se viu acuado em vários
momentos. Com a bola, o time prezava pela posse e buscava envolver a defesa
adversária com toques rápidos, porém sem afobação. Rafael Miranda buscava a
bola entre os zagueiros e distribuía em busca dos mínimos espaços. Um legítimo
jogo de xadrez. A compactação da equipe era visível e em vários momentos
engolia a equipe da casa.
Sem a bola, a equipe grená buscava a recomposição
rápida e compassada. Caso a bola fosse perdida no ataque, imediatamente o
atacante buscava a marcação apertada, enquanto meias e volantes se posicionavam
de modo a pressionar as possíveis opções de passe. A intenção parecia ser dar o
mínimo de trabalho possível aos zagueiros.
A derrota com um pênalti bastante
discutível nos últimos minutos acabou sendo injusta. Apesar disso, o promissor
esquema tático apeteceu a maioria dos torcedores afeanos, que ansiavam para a
ver a Locomotiva em ação em seus domínios. E foi exatamente o que aconteceu,
duas grandes vitórias contra Mogi Mirim e Rio Claro. O primeiro teste de fogo
seria contra o Red Bull, em Campinas. E os 3 a 0 fora de casa mostraram que a
Ferroviária vinha para incomodar (e muito) no Paulistão.
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O excelente time base da Locomotiva de Vieira |
Na rodada seguinte, contra o Ituano
fora de casa, um revés dos mais azarados. Com três falhas do goleiro reserva
(Rodolfo foi liberado do jogo pelo falecimento de um de seus familiares), a
Ferroviária acabou derrotada pelo time da casa por 3 a 2. Sentiu muitas
dificuldades em manter seu esquema, já que Rodolfo é peça chave para a saída de
bola com qualidade.
No entanto, o time mostrou força ao
buscar o resultado adverso de dois gols. Aos 40 do segundo tempo, sofreu o
desempate, quando estava com um jogador a menos pela lesão de Igor Julião.
Apesar da derrota, a Ferroviária chegava com moral para a partida seguinte,
onde enfrentaria o Palmeiras no Allianz Parque.
Partida que, arrisco dizer, foi a
melhor apresentação da Locomotiva no Século XXI. Contra um Palmeiras
pressionado justamente pela falta de padrão tático, a equipe grená fez tudo que
o adversário não desejava. Os comandados de Sérgio Vieira dominaram o Allianz
Parque com uma atuação memorável, coroada com o gol da vitória aos 48 do
segundo tempo marcado por Rafinha.
O papel tático da equipe ficou muito
bem exposto naquele jogo. A linha de zagueiros adiantada acabava com as
pretensões de ligação direta do Palmeiras. Os pontas atacavam e ajudavam na
marcação na mesma intensidade. Rafael Miranda e Fernando Gabriel municiavam Samuel
e Wescley em busca das jogadas de linha de fundo. Robinho, Dudu e Jesus foram
anulados em qualquer tentativa de criação. Marcelo Oliveira não sabia explicar
de onde viera a locomotiva que tinha o atropelado.
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O jogo que chamou a atenção do universo futebolístico (Imagem: Márcio Fernandes) |
A Ferroviária, que tanto incomodou os
grandes nas décadas de 60 e 80, estava de volta. A exposição na mídia foi
maciça, todos queriam saber os segredos do "novo gênio da tática"
Sérgio Vieira. Quem era ele? De onde veio? Qual era seu segredo? Dezenas de veículos de imprensa buscavam os
segredos da tradicional equipe de Araraquara.
Por fim, a exposição acabou sendo um
verdadeiro tiro no pé. Seu adversário seguinte, o Novorizontino, buscou
alternativas ao esquema tático implantado pelo time da casa. A Ferroviária
conheceu a sua primeira derrota em casa depois de quase três anos, muito por
mérito do técnico Guilherme Alves. Apesar da derrota, a Ferroviária seguia
embalada. Apenas um tropeço.
Visitar a Ponte Preta no Moisés
Lucarelli nunca foi uma das tarefas mais fáceis. Sem Rodolfo, expulso contra o
Novorizontino, seria ainda mais difícil. As dificuldades foram muito maiores,
mas as alternativas foram até bem trabalhadas. Antes de sofrer o primeiro gol,
a equipe grená perdeu três chances claríssimas de abrir o placar.
Um jogador essencial para o esquema
tático é Samuel. A sua entrega na marcação sem bola desafoga o lateral
Thallyson, que não tem a devida proteção dos volantes quando o time adversário
ataca pela esquerda. Com a lesão de Samuel, Rafinha entrou como titular e,
apesar de ir bem no ataque, não tinha a mesma prestação defensiva. A Ferroviária
sofreu muito por ambas as laterais e sofreu um gol de Reinaldo, em mais uma
falha do goleiro reserva Cajuru.
Cajuru, coitado... O goleiro que foi
tão importante na Série A2 de 2014 com uma série muito
boa de jogos, sofreu cinco gols em duas partidas nessa temporada. Dois frangos,
duas falhas e um gol defensável. Não tem sido um bom ano para o arqueiro e a
torcida reza a cada partida para que Rodolfo não perca mais jogos.
Ainda sobre o embate em Campinas, as
lesões acometeram o time grená, que perdeu Rafinha e Alex Silva durante a
partida. O empate ainda veio em pênalti convertido por Fernando Gabriel, mas a
derrota novamente viria no fim da partida. Aos 44 do segundo tempo, em uma
infelicidade de Juninho, Wellington Paulista decretaria a vitória da Macaca.
Mais uma derrota dolorida.
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O povo está feliz, tem futebol de qualidade em Araraquara! (Imagem: Benedito Reginaldo Viviani) |
Duas derrotas seguidas, classificação
do campeonato extremamente equilibrada e a sensação do início do ano começa a
sofrer com desgaste físico e psicológico. Qual time não sofre com isso? Apesar
das duas derrotas, a Ferroviária segue com plenas condições de se classificar
para a segunda fase. Deverá disputar as duas vagas diretamente com São Paulo e
Grêmio Osasco Audax. Serão três jogos em casa (São Bernardo, Botafogo e Oeste)
e três fora (Santos, São Bento e Linense).
A classificação virá? Talvez. O
objetivo inicial era escapar do rebaixamento, e isso deve acontecer com mais três
vitórias. Acredito que com quatro vitórias nos últimos seis jogos seja possível
se classificar. Mas a classificação final não será tão emblemática ao fim do
campeonato. A Locomotiva está de volta aos trilhos da elite. Incomodando. Como
sempre foi de seu feitio.
E não veio apenas para fazer
figuração. Como nos tempos de ouro, veio para fazer frente aos grandes, buscar
seu espaço entre as maiores forças do estado e representar o interior de forma
honrada. Tem conseguido isso com maestria... Uma tragédia pode acontecer e o
time acabar rebaixado? Claro que sim, o futebol é charmoso pela sua
imprevisibilidade. Mas não acredito em tamanha injustiça dos deuses do futebol
para com a gloriosa Associação Ferroviária de Esportes.