A necessidade humana do inesperado


Na Odisséia, uma das histórias mais conhecidas da humanidade, de autoria do autor grego Homero, Ulisses é um guerreiro que busca sua volta para casa. Premissa fácil. Porém, como tem que viajar pelos mares entre as inúmeras ilhas gregas, sua viagem se torna mais difícil. Mais complicada ainda ela fica quando o deus dos mares da mitologia grega, Poseidon, começa a atrapalhar seu percurso.

Pois bem, em um dos episódios desse clássico, Ulisses atraca numa ilha. Nela, vivia uma ninfa, Calypse, que era como a personificação da beleza. Para encurtar a história, Ulisses se apaixona pela ninfa e acaba vivendo com ela na ilha por sete longos e gozosos anos.

Mas por que não pela eternidade?

Em determinado momento, Ulisses se cansa. Cansa da beleza de Calypse. Cansa da perfeição da ninfa. Cansa da utopia física que ela representa. Sente saudades de sua mulher, que não era perfeita. Resumindo, Ulisses volta ao mar.
A perfeição cansa, assim como a utopia de Calypse "cansou" Ulisses

Essa parte da Odisséia representa uma incapacidade humana de lidar com utopias, com perfeição. Quando, por algum motivo, caímos numa situação muito boa, se ela for repetitiva, o tédio pode tomar conta de nossas maculadas mentes.

O mesmo pode ser interpretado num contexto futebolístico.

Desde a temporada 2011-12, Real Madrid, Barcelona e Bayern de Munique estabeleceram uma “tripolaridade”, sendo referências mundiais do melhor futebol. Com exceção da temporada 2013-14, na qual o Barcelona caiu da Champions League nas quartas-de-final, em todos os anos pós 2011 os três chegaram às semi-finais do maior torneio continental europeu. Desde 2012, quando o Chelsea conquistou a “orelhuda”, os três revezam o primeiro lugar. Primeiro o Bayern, depois o Real Madrid e, finalmente, o Barcelona, o atual campeão.

Mas o que isso tem a ver com a Odisséia? Bem, é possível estabelecer uma relação desses times “imortais” com a perfeição utópica de Calypse, ou seja, são times “perfeitos”. Irreais. E em algum momento, a humanidade se cansa deles.
Vamos cansar do trio MSN?

Nada contra os times, é importante ressaltar. É uma situação cíclica. Aposto que em algum momento entre os anos de 1970 e 1973 algum europeu pensou: “Mas esses holandeses de novo? Troca o disco um pouquinho”. O objetivo aqui é apontar uma condição humana que é diretamente relacionada ao futebol, não atacar clube A ou B por ser “dominante”.

Retornando, é extremamente humano sentir "preguiça" desses clubes. Muitos até fogem do assunto "El clássico" ou "Pep Guardiola", ou até mesmo do clássico internético "CR7 versus Messi" pelo simples fato de estarem fartos da mesma conversa a todo momento. É interessante, também, perceber que a saturação com a hegemonia desses clubes pode ser identificada no surgimento de simpatizantes e, em muitos casos, torcedores de times que conseguem se “infiltrar” entre os grandes. Chelsea, Borussia Dortmund, Atlético de Madrid e Juventus são os grandes exemplos. Times que, de certa forma inesperadamente, chegaram às finais da Champions League. Mais recentemente, um exemplo perfeito. Na Inglaterra, o glorioso Leicester City de Ranieri lidera a competição, sendo apelidado de “o bem”. Mas mais instigante é discorrer sobre a Inglaterra exclusivamente.
O inesperado nos atrai. 

Sem entrar no mérito da qualidade técnica e tática das grandes ligas europeias, é interessantíssimo notar a questão da terra da rainha. A Premier League é a liga mais assistida do mundo, mesmo com o fato de seus times não terem ido tão bem em competições europeias recentemente. Uma possível resposta para esse fato é a constante presença da “zebra”, ou do resultado inusitado nas partidas da liga. Quem poderia imaginar que o limitado Stoke City enfiaria seis gols goela abaixo do Liverpool no dia da despedida de Steven Gerrard? É possível que a famosa divisão de cotas "à moda Premier League" influencie nisso, deixando os menores com maior poder aquisitivo, com maior poder de investimento em seus elencos, o que ocasiona num fortalecimento do time que, a partir disso, pode competir mais homogeneamente com times melhores. Ou seja, proporcionar um “inesperado”. Talvez seja essa a explicação do grande “boom” da "liga dos desprovidos de habilidade de gingado", como diria meu pai.

Utopias futebolísticas têm fim. A do Ajax acabou, a do Santos acabou, a do Flamengo acabou, a do Real Madrid dos anos 50-60 acabou. Essa agora se estabelece firme e forte a cada ano. Mas cada vez mais as pessoas sentem o desejo de sair da utopia. Sair dos braços de Calypse e cair no mar, a procura de algo imperfeito. Ou, no caso, inesperado.

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