Quem mata os pontos corridos mata a evolução do futebol


Existem poucas cenas que sintetizam tanto a emoção do futebol quanto os minutos finais de Watford e Leicester City pela segunda semi-final dos playoffs da segunda divisão inglesa de 2013.

Tendo perdido a primeira partida por 1x0, o Watford se viu em situação difícil no retorno quando Nugent, do Leicester, cancelou o gol de Vydra. O gol sofrido dava aos Hornets a necessidade de fazer dois gols para não serem eliminados pelo gol fora de casa. Vydra faria 2x1 no segundo tempo, e o Leicester precisava suportar uma pressão insana no final do jogo para garantir sua vaga. E fizeram melhor do que isso. Num contra-ataque nos acréscimos, o jovem Knockaert conseguiu um pênalti para os Foxes. A situação do Watford era de certa eliminação. Se não fosse... o futebol.

Knockaert bateu, o espanhol Almunia, do Watford, defendeu, Knockaert pegou o rebote, Almunia defendeu de novo, a zaga consegue limpar, a defesa recupera a bola, Cassetti entrega para o winger Anya, que corre do meio para a ala direita, onde deixa para o diminuto Forestieri, que cruza para Hogg, que na frente do goleiro dinamarquês Schmeichel (o filho), tem o altruísmo de apenas ajeitar de cabeça para o centroavante-capitão-ogro Troy Deeney, que faz o gol, explode o Vicarage Road e classifica o Watford para Wembley.
Almunia mudou o rumo de um jogo que parecia decidido.

O Leicester tinha (além do ataque titular da Euro-2016 no banco) que conseguir segurar por mais dois minutos uma posição que estava mantendo havia 76 minutos (desde o gol de Nugent) e tinha a seu favor aproximadamente 75% de chance parada de matar o jogo de uma vez por todas. Não seria exagero estimar que, no momento em que Knockaert se preparava para cobrar o pênalti, as chances do Watford se classificarem eram menos do que 2% - classificando os eventos que se seguiram como uma anomalia estatística.

Mas – como qualquer torcedor de bar sabe – futebol não tem a ver com estatística. Futebol é emoção, paixão, resenha, raça, sangue e suor. Não tem nada a ver com números.

Bem, sim e não. Ironicamente, uma das melhores explicações sobre o porquê do futebol ser o esporte mais amado do mundo é dada exatamente pelo maravilhoso “Os números do jogo”, de Chris Anderson e David Sally. Os autores provam com alguns dados simples que o futebol é tão apaixonante exatamente por ser tão imprevisível. Os pontos (gols) são raros, o que torna as zebras muito mais prováveis. Segundo Anderson e Sally, o favorito no futebol vence “apenas” 52% das vezes, contra 60% do beisebol (graças aos playoffs – a temporada regular é mais previsível), 67% (2/3) no futebol americano e basquete (também com playoffs) e 72% no handebol.

Ou seja: por menos recursos que o Alavés tenha, a chance de ele vencer o poderoso Barcelona num jogo do campeonato espanhol ainda é quase 50%. Pode parecer estranho, mas o fato é que, pela imprevisibilidade do futebol, subir seu favoritismo de 52 para 53% é muito difícil. Requer um investimento maciço, como trazer o melhor zagueiro, centroavante ou técnico do mundo para seu time – um esforço comparável ao Real Madrid comprar Cristiano Ronaldo do Manchester United.
O brasileiro Deyverson, do Alavés, já ajudou sua equipe a vencer o Barcelona em pleno Camp Nou. Tudo é possível.

Ou seja: o futebol é apaixonante porque é imprevisível, e não o contrário.

Nesse sentido, o mata-mata é a cara do futebol. Tudo decidido em um ou dois jogos, no calor da partida, apenas os dois adversários se encarando para decidir quem é melhor. Ou assim parece. Mas basta uma análise mais criteriosa para derrubar alguns castelos de areia. O mata-mata é um torneio que premia o time que teve mais sorte – não necessariamente o melhor.

O pobre Knockaert não é o único que concordaria. O holandês Rob Rensenbrink teve a chance de dar a primeira Copa do Mundo para a Holanda em 1978, quando aos 44 do segundo tempo, escapou sozinho e acertou a trave de Fillol. Cinco centímetros pra baixo, a Holanda teria um título mundial, a Argentina teria um a menos, talvez Rensenbrink estaria no mesmo nível de grandeza que Van Basten, talvez Passarella não tivesse tanta moral no futebol, e não teria colecionado trabalhos ruins como treinador de futebol e depois como dirigente, rebaixando o River Plate. Tudo isso por um chute. Arjen Robben teria o mesmo destino ao não conseguir superar Casillas em 2010. Caso o ex-PSV tivesse marcado, quem sabe qual o impacto na história de Xavi, Iniesta, Puyol, Sergio Ramos, del Bosque, Aragonés, Guardiola? E na história do próprio Robben, de Sneijder, van Persie?
Um dos maiores "e se" do futebol recente.

Alguns lances – como o gol anulado de Puskás na final de 1954, o gol duvidoso de Hurst em 1966, a cabeçada de Oscar defendida por Dino Zoff em 1982, a convulsão de Ronaldo Fenômeno em 1998, a expulsão de Zidane em 2006 – conseguem sobreviver para a história mesmo sendo contadas pelos derrotados. Mas existem incontáveis outras que ficam apenas na memória de quem as viveu.

Os alemães acreditam que se Rumenigge não estivesse lesionado, teriam sido campeões em 1982. A Argentina teria sido eliminada na primeira fase em 1990 se Maradona não tivesse tirado uma bola em cima da linha com a mão num jogo contra a URSS. Analisando a final de 1998, Zico lamenta que o zagueiro Leboeuf estivesse em campo ao invés do titular Blanc, que deixava mais espaços para o ataque adversário. Blanc havia sido expulso injustamente na semifinal por uma simulação do zagueiro croata Slaven Bilic. A virada mágica do Manchester United sobre o Bayern talvez não teria sido possível se o bom meia Thorsten Fink não tivesse espanado o taco ao limpar a bola, no lance que acabou no gol de empate de Sheringham. Por outro lado, sir Alex Ferguson acredita firmemente que perdeu a Champions League de 2008 para o Barcelona por estar desfalcado do suspenso volante Fletcher, que protegia o espaço na frente da área. Os juventinos (e o futebol em geral) lamentam o cartão amarelo tomado por Nedved na segunda perna da semi-final da Champions League em 2003, que suspendeu o melhor jogador do time da tediosa final perdida para o Milan. De forma parecida, os alemães se lamentam do cartão que tirou Michael Ballack da final contra o Brasil, em 2002. Ironicamente, antes de devolver com juros a decepção para o Brasil, a Alemanha tinha passado muito perto da eliminação para a Argélia, com o goleiro Neuer saindo para jogar de líbero várias vezes. E provavelmente o Brasil não tivesse sido surrado da forma que foi se Thiago Silva estivesse em campo, o que teria sido possível se o zagueiro não tivesse se empolgado contra a Colômbia e feito falta em Ospina na saída de bola.

Tudo isso nos leva a concluir que não é que faltem méritos aos times campeões de mata-mata – muito pelo contrário. Mas nos permite concluir que, apesar do que diga Renato Gaúcho, ser campeão de um torneio de mata-mata não o torna melhor.
Renato tem muitos méritos e mereceu a Copa do Brasil, mas um torneio de mata-mata dificilmente serve de parâmetro para definirmos a melhor equipe.

Claro - poucas pessoas prefeririam ser um brilhante vencido a ser um campeão mediano. Nem Johan Cruijff, tão fiel a seu estilo, ficou feliz ao ser vice-campeão em 1974. O objetivo máximo de um time de futebol deve ser o título, e não o estilo de jogo. Em outras palavras: todo mundo quer ser campeão. Ser o melhor é um bônus. E não há absolutamente nada de errado em adotar essa atitude para seu time. Errado é quem, olhando de fora, tenta copiar o campeão ao invés de copiar o melhor.

Enzo Bearzot montou em 1982 um time formado por jogadores altamente técnicos (não se engane: Scirea, Cabrini, Tardelli, Antognoni e Bruno Conti eram extremamente talentosos) que foi campeão do mundo com um futebol disciplinado, eficiente e não muito vistoso. Foi copiado por inúmeros times depois de si, inclusive o brasileiro Lazaroni em 1990, que usavam o sucesso da Itália para amontoar zagueiros e volantes e apresentar um futebol miserável. Sem querer desrespeitar o excelente zagueiro brasileiro, mas uma coisa é ter Scirea (um zagueiro que avançava, passava, lançava) como líbero atrás de um stopper competente (Collovati) e um man-marker (Gentile), outra é ter Ricardo Gomes (um stopper competente) atrás de outros dois stoppers, montando uma defesa estática (mesmo que com craques). Isso é só um dos muitos exemplos. Quantas vezes na década de 90 não vimos – nas palavras de PVC em Tatica Mente - “times empilhando volantes em cima de zagueiros, com apenas dois camicases à frente para tentar um gol solitário”? O mundo assistiu a duas décadas de futebol feio apenas por ter decidido copiar de forma equivocada o vencedor de um torneio de tiro curto.

Dentre tantas frases boas sobre o futebol, uma se aplica bem a esta discussão: no futebol, não ganha o melhor, melhor é quem ganha. Só que, para incômodo de Renato Gaúcho, apenas a primeira parte está correta. O futebol é imprevisível demais para cravar quem é o melhor. Pelos números fornecidos por Anderson e Sally, podemos tirar uma conclusão: dizer imparcialmente que um dos finalistas de um torneio mata-mata é melhor do que o outro é como dizer que cara é melhor do que coroa. Só existe uma forma de aplacar a aleatoriedade: aumentar a amostra.

Torneios de pontos corridos são importantes porque dificilmente produzem um campeão contestado (exceto quando há problemas extra campo, como o Corinthians em 2005 e a Internazionale em 2005-2006). Ser o melhor colocado após 38 rodadas elimina a imensa maioria das desculpas “e se fulano tivesse jogado aquele jogo...”; “e se o juiz não tivesse marcado aquele pênalti...”. Ninguém duvida que o criticado Palmeiras seja o melhor time do Brasil em 2016, mas o mesmo não podia ser dito quando ganhou uma Copa do Brasil aos trancos e barrancos em 2015 (e nem em 2012, quando acabou rebaixado). Ninguém mais pode chamar o Atlético de Madrid de time “de sorte” após ter sido campeão de La Liga em 2013-2014, ao passo que a Copa do Rey conquistada na temporada anterior não teria o mesmo peso. E, acima de tudo, ninguém duvida que o Leicester foi o melhor time da Inglaterra na temporada 2015-2016, peso que não teria se conquistasse a FA Cup (como o Wigan comprovou fazendo isso e sendo rebaixado no mesmo ano). Até porque, voltando à história do começo, o Watford perdeu o play-off para o Crystal Palace. Definitivamente não se deve basear sucesso ou fracasso num resultado de mata-mata.
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