Entrevista com uma lenda - Parte ll, futebol argentino dentro e fora de campo

Júlio Grondona (ex-presidente da AFA, falecido em 2014) e César Garcia, em 2009

Segunda parte da entrevista com César Ricardo Garcia, um argentino que vive em Colón, mas que, consigo, guarda um enorme conhecimento do futebol em geral e do Independiente em particular. Neste segundo momento da entrevista, vemos o “senhor Garcia” muito mais solto e falando sobre muitos temas, não somente sobre o seu clube do coração, tocando em pontos sensíveis e problemáticos para o futebol argentino.

Ao leitor atento e amigo, um aviso: César fez muitos parênteses e eu também fui obrigado a fazer para manter ou explicar melhor o sentido de algumas expressões. A diferenciação entre os meus parênteses e os de César será feita simplesmente com o formato do texto, quando for meu, será usado itálico.

Antes, ainda, nós do 4-3-3 gostaríamos de agradecer a atenção e prestatividade do senhor César Ricardo Garcia, essa entrevista ajuda muito ao brasileiro, que fica ilhado em relação aos outros países, a conhecer melhor como funciona o futebol de um país vizinho, hermano, como dizemos aqui.

1) Como você sente as distintas formas de relação do “hincha” (como chamam os torcedores na Argentina) e das pessoas em geral com o futebol no Brasil e na Argentina? Como você vê a diferença, em geral, entre o futebol brasileiro e o argentino (por exemplo, no Brasil há mais times grandes que na Argentina, aqui temos 12 e na Argentina cinco) e como é a relação do “hincha” do interior da Argentina com o futebol, há elementos que distinguem “porteños” (aqueles nascidos em Buenos Aires)?

Na Argentina o futebol apaixona muito e creio que excessivamente, porque também nesse sentido as pessoas mudaram muito, o “hincha”. Agora exige-se que ganhem de qualquer jeito, algumas vezes isso não é possível.

Tive a chance de ir muitas vezes ao estádio do “Rojo” e ficava envergonhado ao ouvir as pessoas que estavam nas “plateias”, ou seja, não eram aqueles das tribunas populares (a plateia é um “setor” do estádio onde, em geral, ficam pessoas com mais “nível social” do que as populares)... era lastimoso ouvir as barbaridades que gritavam. Hoje se somou o problema das barras (barras são mais ou menos a mesma coisa que uma “torcida organizada” no Brasil, porém há especificidades e condimentos tipicamente argentinos), aqui há um negócio que todos conhecem e nada faz nada para impedir que aconteça. Penso que a deterioração dos times ao venderem seus principais jogadores ao exterior (ainda que continuamente surjam bons jogadores) nivelou por baixo o nível de jogo, os torneios são mais parelhos, até uns 20 anos atrás, os campeões eram sempre os mesmo, agora qualquer um pode ser campeão.

Não conheço a fundo o “torcedor” (porque César usou o termo torcedor – não perguntei “em off” mas provavelmente ele deva conhecer que existe uma diferença na cultura do “hincha” e do “torcedor) brasileiro, somente observo algumas vezes partidos pela televisão, creio que são mais “sãos” nesse sentido, é uma vergonha que não se possa ir ver seu time quando joga fora de casa (ele se refere à proibição de torcida visitante nos torneios argentinos para evitar mortes, brigas, etc). Os estádios com “hinchas” dos dois times são a verdadeira festa... mas claro, com todos os problemas que rodeiam estes espetáculos, é complicado. Eu deixei de ir faz 3 anos. E, a respeito dos times grandes, você me fez rir ao se referir a 4 (eu cometi um erro de digitação e falei que na argentina havia 4 grandes.. César, como sabe que sou torcedor do Independiente – como ele – pensou que eu estava fazendo uma piada com o Racing, tirando-o do rol dos grandes clubes argentinos.. a todos os “hinchas” e admiradores da “academia” peço perdão, foi um erro e não uma zoação/broma, é óbvio que o Racing Club é um grande)... com certeza você tirou os que falamos que são “mufas” (traduzir o termo mufa é uma maldade, mufa é mufa, mas, para a melhor compreensão do leitor que desconhece completamente as gírias futeboleiras argentinas, digamos que “mufa” é algo como “azarado”)... Entendo que são os mais conhecidos porque a NÍVEL NACIONAL são os que contam com maior quantidade de torcida, e por isso se denominam grandes (ele se refere aos cinco grandes). Mas eu creio que há outros grandes, os times de Rosário, por exemplo, o que acontece é que seus torcedores se reduzem somente aos que vivem na cidade. Há clubes muito importantes, Talleres de Córdoba, é um grande do interior. Os times de “Tucumán” também. Estudiantes de La Plata tem importantes títulos internacionais (os “pinchas”, apelido do Estudiantes, possuem 4 libertadores, mais que qualquer brasileiro), vários. Em relação aos “hinchas” do interior com os “porteños”, sim há uma enorme diferença, mas não passa somente no futebol, é assim em todos os aspectos. As pessoas de outras partes do país, em geral, não gostam dos “porteños”, em outras províncias (províncias são como os argentinos denominam o que chamamos de “estados”, “Entre Ríos”, “Mendoza”, etc, são províncias) não gostam dos porteños, e às vezes é por próprio mérito deles, são “agrandados” (algo como “alguém que se crê grande”, ou seja, arrogante), se acham superiores, e estão totalmente equivocados. Eu viajei no exterior pelo México, experiências onde um grupo de porteños nos fazia passar por maus bocados a todos porque acham que são os donos da verdade, do mundo. Eu não tenho muito problema com eles, há muita gente boa, mas somos diferentes. O portenho não conhece os sacrifícios que fazem os hinchas do interior (e aqui posso envolver a todos os times) para poder ver seu time, quando eles têm todos os estádios a algumas quadras de suas casas. Eu não me arrependo, muito pelo contrário, mas tenho viajado muitas vezes, várias horas, voltando de noite, tendo que trabalhar no dia seguinte. Atualmente inclusive por haver tantos jogos, se joga sexta, sábado, domingo e segunda, é muito mais complicado ainda porque se eu quisesse ir em uma sexta não posso, em um domingo se for de noite, volto muito tarde. Isso não é mais para mim.
Bochini (direita) e César (esquerda) com seu filho no colo. Foto de um encontro da "Peña" da cidade de Colón, onde vive nosso entrevistado


2) Como você vê os 5 grandes hoje na disputa pelo título?

Vejo os 4 ou 5 grandes de hoje emparelhados, mas se falamos em chances de ser campeão, há que somar outros, ainda que Rosário Central tenha vendido Donatti, se diz que Larrondo vai para o River (essa transferência realmente se concretizou), que perdeu vários jogadores importantes. Eu não gosto do Boca, tem possibilidades na Liberdadores pelo baixíssimo nível dos rivais (Boca não havia ainda sido eliminado pelo Independiente... del Valle, não o time do coração de César), “Rasin” (sic – ele escreveu assim, estou colocando para denotar mesmo a rivalidade, aos acadêmicos peço que entendam) não sei... não vejo como possibilidades de nada. San Lorenzo pode ser duro rival, e Independiente se trouxerem os dois ou três jogadores que estão faltando, pode lutar pelo título.
César e Di Maria, nos tempos de Maradona no comando da seleção.

3) Como você vê a diferença do futebol argentino com o passar dos anos, há somente uma mudança, em geral as coisas melhoraram ou pioraram? E o que acha da seleção hoje com toda essa confusão que houve na AFA?

O futebol argentino mudou muito e para pior, eu acho. Mesmo no Independiente, houve administrações que destruíram a economia do clube. Não é possível que um clube que tinha tantos títulos locais e internacionais nos últimos 20-25 anos ganhou somente um ou dois deles e não é campeão há 14 anos (César se refere obviamente aos títulos nacionais cujo último título do Independiente foi ganho em 2002, pois o Independiente foi campeão da copa sulamericana em 2010). Conheci vários presidentes do clube, conheci o Grondona (que vi na Espanha, você bem sabe por causa do meu livro – eu tive a chance de ler o livro do César), mas o conhecia antes, conheci Pedro Isso (o MELHOR DE TODOS), conheci Bottaro, mas logo vieram vários delinquentes em sequência, com exceção de Cantero (que enfrentou os barras, eu JAMAIS culpei Cantero pelo rebaixamento) e nele vejo ao menos um homem honesto. O que acontece na AFA é bizarro, causa vergonha, agora nomearam Orlaticochea (bom nome), ex mufa (sempre que um torcedor do Independiente nomeia alguém por mufa, entenda-se: esteve no Racing Clube) e River, para ser treinador nos jogos olímpicos no seu país, e não consegue juntar 12 jogadores (quando entrevistamos César isso realmente havia um grande problema para juntar os jogadores necessários à composição da equipe de futebol masculino da Argentina para as olimpíadas). Ser presidente da AFA obviamente dá poder, imagine só o Grondona (que certamente enriqueceu sendo tantos anos presidente), mas colocou a Argentina em um lugar importante do futebol, ser vice da FIFA não é pouca coisa... Agora todos estão brigando para ocupar seu posto, e me dão nojo, são más pessoas. Isto faz muito mal ao futebol argentino. Muitos riem do Maradona, pois a droga causou muitos malefícios a ele, fala com certa dificuldade, mas diz verdades enormes, ele foi quem teve coragem de enfrentar os poderosos, todos corruptos. O tempo dirá o que vai acontecer. Da seleção eu não sei o que dizer, dizem que Bielsa poderia ser o técnico, mas até que não se tenha uma diretoria (na época em que César deu esta entrevista ainda não havia diretoria na AFA, a instituição estava literalmente entregue).
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