A mágica canarinho em Liverpool e a importância de Fábio Aurélio


Quem acompanha a Premier League nos tempos atuais já está acostumado com a gigantesca diversidade de nacionalidades espalhadas pelos clubes ingleses. Destaques de ligas menores são cada vez mais requisitados e o impacto causado por jogadores de diferentes continentes é cada vez maior. E claro, os brasileiros estão inseridos nesse contexto. Mas nem sempre foi assim...

Um dos grandes exemplos desse contexto é o Liverpool. O clube inglês mais vitorioso no contexto internacional demorou a "abraçar" sul-americanos em seu elenco. As portas pareciam ainda mais fechadas para os brasileiros. Quem vê a constituição do elenco atual, que conta com Coutinho, Firmino e Lucas Leiva como destaques e extremamente queridos pela torcida, pode não imaginar a lentidão desse processo.
Hoje queridos, nem sempre foi assim para os brasileiros em Anfield.

Os ingleses, por natureza, são exigentes e adeptos da tradição. A cidade de Liverpool no geral é ainda mais conservadora. Os scousers (como são chamados os nativos de Merseyside) possuem até mesmo um dialeto próprio e são bastante bairristas. Além disso, as cidades inglesas geralmente são nubladas por natureza e muito frias, o que não agrada a maioria dos brasileiros.

Além da feição pelo tradicionalismo, os ingleses sempre tiveram uma ideia muito ruim dos jogadores brasileiros (até com certa razão, em alguns casos). A fama era uma só: boêmio, descompromissado com os treinamentos, limitado taticamente e egoísta em campo. Combinação, muitas vezes infundada, que contribuía para o ceticismo inglês.

Nos reds, o panorama começou a mudar só em 2006. O técnico Rafael Benítez acabara de conquistar a Liga dos Campeões de 2004/05 e buscava reforçar o elenco para sua sequência no clube inglês. O brasileiro Fábio Aurélio terminava seu contrato com o Valencia na mesma época e Benítez, que trabalhou com o lateral no clube espanhol, recomendou sua contração. Era o início da mudança de mentalidade.
Rafa Benítez e os novos reforços dos reds: Fabio Aurélio e Paletta.

A chegada de Aurélio foi tratada com desconfiança. Apesar da boa passagem pelo Valencia, com um vice da Liga dos Campeões e o bicampeonato espanhol depois de 31 anos de jejum, o ceticismo pelo simples fato da nacionalidade ainda era grande. O brasileiro era acompanhado de perto por torcida e imprensa.

No entanto, o lateral agradou. E muito. Seu estilo de jogo era muito parecido com o europeu. Técnico e bastante dedicado, Aurélio foi ganhando a confiança do elenco (é verdade que o grupo espanhol ajudou) e mesmo da imprensa, que tanto relutava em aceitar sul-americanos. Em poucos meses, Aurélio já era membro sólido da equipe e sua seriedade era um belo pontapé inicial.
Não demorou muito para Fábio se adaptar ao clube.

As coisas mudavam aos poucos em Liverpool. Há poucos anos, Gerard Houlier se tornaria o primeiro técnico não-britânico da história do clube. Na sequência, Benítez e seu núcleo espanhol também conseguiam ótimos resultados. O primeiro brasileiro no clube também obtinha êxitos. Até a primeira grave lesão... 

Como Aurélio reagiria à grave lesão que o acometeu logo em 2007 (próximo à final da Liga dos Campeões)? Buscaria a recuperação de forma correta? Voltaria à boa forma? Foram vários e vários questionamentos. Todos respondidos pelo brasileiro, que se mostrava extremamente dedicado a buscar sua recuperação antes dos prazos. 
A primeira lesão séria do lateral brasileiro. Infelizmente, a cena acabou virando rotina.

As graves lesões vinham de encontro com o bom desempenho de Fábio Aurélio na equipe. Apesar disso, a desconfiança ficava cada vez mais para trás. A torcida do Liverpool respeitava e, até mesmo, sentia pena do brasileiro e de suas insistentes lesões. Quando estava fora, fazia muita falta, inclusive em duelos decisivos na Liga dos Campeões.

O jornalista esportivo inglês Steve Graves, repórter do jornal Liverpool Echo, destaca a aflição que se fazia presente durante suas lesões. "Era muito triste. Parecia que toda vez que Aurélio estava estabilizado na equipe, jogando seu melhor futebol, acontecia algo. A dedicação dele era tão grande que até mesmo Roy Hodgson o repatriou após término de seu contrato. Era um cara muito querido". 


Quando estava no auge físico, realizou boas partidas e esteve sempre presente em embates épicos com grandes atuações, como a goleada por 4 a 1 em pleno Old Trafford contra o Manchester United, no empate em 4 a 4 contra o Chelsea, entre outros. Aurélio sempre causara boa impressão. Como dizia Graves, "junto com Xabi Alonso e Luis Garcia, trouxeram glamour e imprevisibilidade jamais vistos antes em Liverpool".
As lesões atrapalharam demais o brasileiro, que ainda assim, participava bem quando podia.

O jornalista esportivo Décio Lopes, na época apresentador do programa Expresso da Bola da SporTV e editor do Esporte Espetacular, destaca o lateral como o grande fator dessa quebra de paradigmas contra brasileiros no Liverpool. "Ele, mesmo com as lesões, mostrou que o jogador brasileiro também pode ser sério, trabalhador, responsável, bem comportado, dedicado, taticamente disciplinado. A fama de que o brasileiro não tinha disciplina tática ficava para trás. Foi um marco essencial".

Aurélio abriu portas que nunca mais se fechariam. Pouco depois de sua chegada, foi a vez de Lucas Leiva desembarcar em Liverpool. Sua adaptação foi ainda mais difícil e demorou a acontecer, mas foi possível devido ao crédito conquistado por sua disciplina. Se tornou um dos destaques do time. Doni e Diego Cavalieri vieram algum tempo depois.
Leiva foi o próximo a desembarcar e agradar em Liverpool.

Vieram mais alguns anos e Phillipe Coutinho desembarcou em Liverpool. O pequeno mágico, como é chamado, caiu nas graças da torcida rapidamente. Roberto Firmino também chegou dois anos depois. O processo de adaptação dos dois foi muito mais tranquilo. O scouser tradicional estava cada vez mais adaptado a ver o sangue brasileiro em sua equipe. E gostava daquilo cada dia mais.

Lucas, Firmino e Coutinho estão em alta, inclusive são homenageados com banners, faixas e tem toda a simpatia da apaixonada torcida do Liverpool. O jovem Allan, contratado do Internacional com apenas 18 anos, já é um dos xodós de Klopp e é tido como uma das grandes promessas da equipe para o futuro. 
Os brasileiros caíram nas graças dos torcedores reds.

Os cinzentos céus de Liverpool nunca partilharam tantos tons de verde e amarelo. Para o bem do Liverpool, para o bem dos jogadores brasileiros e pros milhares de fãs do gigante inglês espalhados pelo Brasil. Apesar de suas lesões, Fábio Aurélio deixou um grande legado. E deve se orgulhar muito disso. 

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