Corrente Brasileira


Já ofegante, batido física mas não psicologicamente, estava aguardando, na área, aos 122 minutos, o homem predestinado a unir um país, que deixaria de lado suas desigualdades e diferenças pela primeira vez em muitas ocasiões.

-------------------

Autorizava a saída de bola o juiz Robert Lindsay Todd. Diante de cerca de 28 mil expectadores e de um país inteiro, interligado por uma corrente transcendental que talvez tenha mobilizado até os mais desinformados - visto que houve comércio interrompendo suas atividades por um dia para prestigiar o ápice do desporto nacional até aquele momento -, começava a final do Campeonato Sul-Americano de 1919. O Estádio das Laranjeiras, construído para a disputa do torneio, recebia as seleções de Brasil e Uruguai. Às 14 horas e 10 minutos (na pontualidade de um verdadeiro árbitro britânico), dava a saída o quadro brasileiro.

Após um jogo com boas oportunidades para ambos os lado e muito desgaste físico, prevaleceu o 0 a 0, o que decretava a prorrogação. O empolgante match procedeu de forma mais centralizada no meio-campo; os sistemas defensivos dos times - dantes precariamente trabalhados em comparação aos moldes de hoje - mostraram seu ímpeto, sua força diante de todo o esforço dos forwards. E foi exatamente esse o parâmetro para a segunda etapa da prorrogação.

Mas as primeiras aparições da disputa da meta do penal como critério de desempate só começou a surgir nos anos 1950. Ainda estamos em 1919, que faz parte do período praticamente integrado à pré-história do football. Talvez a arqueologia seja o método utilizado para analisar cientificamente os uniformes dos jogadores, não sei. Mas pra jogar bola nessa época, tinha que ter amor (ou então exercer duas profissões mutuamente): a remuneração não era das melhores e algumas condições de regulamentação eram desumanas, dentre elas o fato de que pelo menos na final da Sul-Americana, se a prorrogação terminasse empatada, haveria outros 30 minutos de prorrogação.

Nesse pontos os jogadores já estavam esgotados. Destruídos. Vencidos por eles mesmos.

Mas desistir? Jamais.

Corria pela extrema direita Manuel Nunes, ou apenas Neco, primeiro ídolo da história do Corinthians. Até então importantíssimo para o a seleção em todo o decorrer do Campeonato Sul-Americano de 1919, o jogador está se aproximando em uma velocidade relativamente alta da linha de fundo. Suas condições fisiológicas, que após 122 minutos de futebol já eram inexistentes - ele só conseguia se mover por conta daquela última carga de energia que por muitas vezes é intitulada de "raça" -, não interviram no seu raciocínio: ele tomou a atitude correta. Talvez pudesse ter driblado o seu marcador Floglino para, quem sabe, caso saísse com uma vitória ali, imortalizar definitivamente seu nome no futebol. Mas não. Sabe-se lá as vertentes, os diversos caminhos que um milissegundo de alteração nas coordenações motoras poderiam causar! O campeonato para a gente poderia ter acabado ali!

Pois bem - Neco tomou a atitude sábia e ao se defrontar com a linha que delimitava o campo, jogou a bola lá pro meio.

Nesse ponto que surgiu Arthur.

Aguardando, lá na área, no minuto 122 da partida, a bola do seu companheiro. Fuzilando a meta uruguaia, junto a cada brasileiro.

Cada brasileiro que, historicamente, teve que aguentar governos pífios, pessoas poderosas pouco se importando com a vontade geral ou com o que é melhor pra todos.

Cada brasileiro que sem ter muito que se gabar, encontra no futebol a sua rota para uma realidade alternativa, que por mais alternativa que seja, no fim das contas se fazia real: a paixão por esse esporte começava a se tornar imensurável.

Cada brasileiro que, junto ao TIGRE e movidos por um mesmo movimento àquela tal da corrente transcendental, colocaram o Brasil na frente do marcador.

Arthur Friedenreich. Primeiro símbolo de uma corrente que não se apaga nunca. Passou Maracanazzo. Passou a Tragédia do Sarriá. Passou 1998. Passou o Mineiratzen. E cá ela está, unindo cada brasileiro, em um dos momentos políticos intensos de nosso país. Talvez seja por isso que o futebol receba essa importância de muitos. A capacidade que ele tem de unir coxinha, petralha, tucano, pão com mortadela em uma torcida só. O expoente do que qualquer pessoa - do meu entender - sã gostaria de ver: todos unidos em busca de um Brasil melhor.

E você, Arthur, aniversariante da semana, foi o primeiro homem a tornar essa corrente visível. Você interligou classes, certamente amenizou a segregação racial na época (que quase foi determinante para sua carreira) e uniu o Brasil.

Você é um herói. Obrigado.
Compartilhar: Plus